Legenda da foto: Doudou Diene, relator especial da ONU, apresenta relatório sobre a discriminação na Suíça, em março de 2007 (Keystone)
Em fins de agosto passado, eu - uma brasileira-suíça - participava do 85º Congresso dos Suíços residentes no estrangeiro. O clima era de cordialidade, contudo o teor das intervenções deixava perceber uma certa tensão, uma dose de preocupação com os rumos que vem tomando o país.
Por Safira Ammann, Natal, Brasil
Durante três dias foram apresentadas ricas experiências realizadas pelos participantes e encaminhadas reivindicações aos representantes do governo então presentes ao evento. Mas havia no ar uma certa tensão.
Era como se aqueles suíços sentissem a necessidade de salvaguardar princípios, valores e costumes da pátria que eles haviam deixado há muitos anos, e que não era mais a mesma. Adicionalmente, a paisagem humana que eles cruzavam nas ruas, parecia-lhes muito diversa daquela de antigamente...
As transformações
Com efeito... Quem deixou o país até a década de 80, sente, ao retornar, profundas transformações por que ele passa, dentre muitas, as que foram provocadas pelo crescimento das migrações internacionais.
Por opção constitucional, a Suíça é acolhedora de refugiados políticos, e durante as últimas décadas viu crescer fortemente a entrada de demandantes de asilo, originários sobretudo do terceiro mundo e da ex-Iugoslávia.
Além disso, o mercado de trabalho helvético atrai mais de um milhão de trabalhadores do mundo inteiro, tornando a população cada vez mais internacional e multicultural.
Esse fato vem provocando sensível mal-estar entre os grupos de "xenófobos", expresso em observações como aquela que ouvi certa vez: "quando eu entro num trem em Berna, não sei mais se estou na Ásia ou na África... O que menos parece é que estou na Suíça... "
Diversas faces da discriminação
Os fenômenos da discriminação são bem conhecidos na Suíça. Órgãos nacionais e estrangeiros, públicos e privados registram permanentemente atos e suspeitas de discriminação.
O Ministério do Interior criou a Comissão Federal contra o Racismo (CFR) bem como o Serviço de Luta contra o Racismo, dotados de fundos significativos, que orientam a população e ajudam a comunidade na integração das raças, religiões e etnias.
Além dos órgãos federais funcionam localmente os Serviços de Consulta contra a discriminação racial, com atendimento integral e gratuito, o qual é complementado pelo Guia Jurídico, para prestar apoio e serviços às vítimas de quaisquer tipos de discriminação.
Em nível da sociedade civil existe uma forte e ampla rede de grupos e associações que batalham contra todos os tipos de discriminação: de origem, de gênero, classe social, raça, religião etc.
A CFR levanta os atos discriminatórios cometidos e publica os julgamentos e condenações dos culpados. O banco de dados da CFR informa que - entre 1995 e 2003 – foram dadas 241 queixas e julgados 123 atos de discriminação.
Em 81% dos casos os seus autores foram declarados culpados e punidos, sendo a maioria composta por grupos de extrema direita (neonazistas, skinheads, por exemplo). Dentre as vítimas, conforme o mesmo banco de dados da Comissão, os grupos mais frequentemente discriminados foram os estrangeiros em geral, os judeus, os muçulmanos, os negros, os requerentes de asilo e os ciganos.
Safira Ammann em seu escritório, em Natal. (swissinfo)
São os brasileiros discriminados?
Durante os 15 anos que residi na Suíça realizei pesquisa junto a brasileiros vivendo legalmente no país e uma das questões era a que se encontra supracitada.
A maioria dos entrevistados afirmou não se sentir discriminada e alguns que responderam afirmativamente acrescentaram que no Brasil chegaram a sê-lo de forma ainda mais radical e mais chocante do que na Suíça.
Uma jovem negra, por exemplo, fez concurso para um posto de trabalho numa importante empresa carioca, foi aprovada em primeiro lugar e em seguida preterida por uma branca, pois a empresa não admitia negros em seu quadro de pessoal.
Um brasileiro (branco) informou que, morando em São Paulo, foi repetidas vezes tratado com ar de desprezo, pelo simples fato de ser nordestino, e disse jamais ter sido inferiorizado na civilizada Suíça.
Diversa é a narrativa de uma brasileira discriminada no âmbito do trabalho no país de Guilherme Tell. Sendo há nove anos professora de uma creche, foi apresentada pelos colegas como candidata preferencial para o posto de diretora. Tinha passaporte suíço, formação profissional, competência e larga experiência na área, mas os pais dos alunos boicotaram sua candidatura, sob o pretexto de que não entregariam seus filhos a uma estrangeira. Felizmente, graças ao apoio massivo do corpo docente e de alguns pais de alunos, a brasileira foi eleita diretora.
A Suíça luta contra a discriminação
Em 1993 os Estados-membros do Conselho da Europa criaram a Comissão Européia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), composta por especialistas independentes de cada Estado membro.
Um dos principais instrumentos de trabalho dessa Comissão consiste no estudo e publicação de relatórios periódicos sobre a legislação e as políticas oficiais contra o racismo, a xenofobia, o anti-semitismo e a intolerância de qualquer espécie.
O terceiro Relatório da Comissão sobre a Suíça, publicado em janeiro de 2004, ressalta os avanços registrados, dentre os quais são destacados a interdição de toda forma de discriminação, conforme Art. 8 da nova Constituição (1999) e a criação de órgãos em nível federal responsáveis pela observância do que preceitua o referido Artigo.
O Relatório critica a discriminação observada em 16 diferentes setores da sociedade e apresenta ao governo 38 recomendações, entre outras: o aumento da oferta de estacionamento para os carros dos ciganos; a diminuição dos controles, pela polícia, dos estrangeiros que freqüentam casas noturnas; o combate mais intensivo às organizações racistas; realização de cursos de especialização para os professores que ensinem em classes onde grande parte dos alunos sejam procedentes de culturas estrangeiras.
Desafios futuros
A estrutura cultural da Suíça está sujeita a profundas transformações. A população estrangeira cresceu 39% entre 1990 e 2006, seis vezes mais do que a de nacionalidade helvética (incluídas as naturalizações).
No âmbito das religiões, o número de muçulmanos dobrou de 152.000 em 1990 para 310.000 em 2000. Um de cinco estrangeiros residentes no país é islamita.
O censo demográfico informa que 38% dos estrangeiros não falam nenhuma das quatro línguas nacionais como língua principal, o que dificulta a integração, e exatamente a integração seria a chave da convivência entre as raças, etnias e religiões.
Para agravar este quadro, a vitória da direita nacionalista nas eleições parlamentares de outubro passado foi pautada sobre uma campanha que defendia expulsar os estrangeiros envolvidos em crimes.
As imagens veiculadas por esse partido mostravam carneiros brancos expulsando do rebanho um carneiro de cor preta. O presidente da Comissão Federal Contra o Racismo publicou, em seguida, um livro com o título "Não somos um povo de carneiros – Racismo e Anti-racismo na Suíça", no qual analisa a problemática da discriminação de raça, religião e etnia.
Esperamos que esta publicação e os demais relatórios sobre o assunto não somente contribuam para entender a discriminação, mas, sobretudo, para reduzí-la – tanto na Suíça como nos países de origem dos discriminados.
Fonte Swissinfo