BRASÍLIA - Em Aracaju, ciganos vivem em um antigo galinheiro. Em Goiás, diversas prefeituras proíbem os nômades de erguer suas barracas. Em todo o Brasil, membros da etnia Calon, a mais pobre, vivem em condições precárias de saneamento e saúde. Pela tradição de invisibilidade, boa parte se recusa a tirar carteira de identidade ou receber técnicos do IBGE. Em meio à discriminação de séculos de história, lideranças ciganas de vários Estados brasileiros estão se articulando, neste início de milênio, para levar finalmente cidadania a seu povo.
O relato de ciganos vivendo em um galinheiro, nos arredores de Aracaju, foi feito à reportagem na terça-feira, dia 21, pelo antropólogo Frans Moonen, professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). É dele a posição de que não há estatística segura sobre o número de ciganos no Brasil. Uma pesquisadora falou uma vez que são 150 mil, e em outras ocasiões 300 mil, 600 mil e 800 mil. O fato é que eles são muitos, e com problemas decorrentes da natalidade:
- As famílias que vivem em acampamentos não possuem informações sobre controle de natalidade e uso de contraceptivos – descreve a paulista Lara Orlow, Calon de Guarulhos que freqüenta acampamentos pobres em Franco da Rocha. - Geram muitos filhos, e na maioria dos casos, entregam as crianças ainda recém-nascidas a outros ciganos com melhores condições de vida ou ainda os dão por adoção a gadjes (não ciganos), perdendo suas raízes, costumes e histórico cultural.
Os ciganos têm agrupamentos significativos em municípios como Campinas (calcula-se que haja 400 famílias), Curitiba, Aracaju e Nova Iguaçu, entre outros. Apesar da diferença, ou mesmo rivalidade entre etnias como Rom (subdividida por sua vez em vários grupos), Calon e Cindi, há convergência no culto à família e, hoje, um início de aproximação visando a conquista de direitos para todos. O evento do dia 21, com lideranças ciganas no Palácio do Planalto, pode ser considerado um marco nesse sentido.
A ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, não compareceu ao evento promovido por sua pasta. Por conta do lançamento do GT Cultural Cigano, porém, o ator Sérgio Mamberti, secretário da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, prestigiou os ciganos e acenou com a possibilidade de um edital específico para projetos por eles apresentados, a exemplo do que já está sendo feito com comunidades indígenas.
As reivindicações dos Calon e Rom presentes ao evento, convergiram em sua maioria. Os ciganos querem mais visibilidade, reconhecimento e condições de saneamento, educação e saúde nos acampamentos. Querem acesso à cultura, e verbas pelos programas de incentivos governamentais para “contar a própria história”.
E esta é uma história de discriminações.
- Eles chegaram ao Brasil acorrentados, no século 19 – conta a tia de Lara Orlow, a paulista Márcia Yáskara Guelpa, da Associação de Preservação da Cultura Cigana (Apreci) – Os negros viviam em situação melhor, pois recebiam comida. Os ciganos viviam nos arredores, e quando entravam na cidade não podiam nem pisar na calçada.
Mesmo hoje não é difícil ver alguém atravessar a calçada, nas grandes cidades do Brasil ou da Europa, quando aparece um cigano. Eles são estigmatizados como ladrões, ou vagabundos – antigamente, até como “raptores de criancinhas”, como conta o paranaense Cláudio Iovanovitchi, do Conselho de Promoção da Igualdade Racial.
- Essa de raptar crianças quem criou foi o Miguel de Cervantes, em um de seus contos – afirma Iovanovitchi. No Brasil, estamos com uma legislação que é uma criança de 2 anos. (Os ciganos foram incluídos no Programa Nacional de Direitos Humanos II, durante o governo FHC.) E na hora em que conseguirem dividir a voz dos excluídos, os primeiros a dançar serão os ciganos.
Em Franco da Rocha, Carlos Calon, um funcionário da prefeitura, cavou uma trincheira em defesa dos que moram em acampamentos na região:
- Não são expulsos porque eu brigo por isso. Falo: então eu vou embora. Se eu não sou bem-vindo, então vou embora. Cigano é um pelo outro.
O goiano Jesus, um Calon que se orgulha da filha ter passado num concurso público para professora, conta que está difícil montar um acampamento em seu Estado, pois várias prefeituras têm promulgado leis proibindo as barracas. “Não há nada que possam fazer por isso?”, pergunta.
Segundo Iovanovitchi, os ladrões locais, nesses municípios pequenos, desenvolveram o costume de promover ondas de furto no período em que os ciganos lá estão. Acusados, os ciganos vão parar na polícia. Sem RG, sem endereço, sem testemunhas a favor, acabam sendo pressionados a deixar o local. E o círculo vicioso se perpetua.
Esse círculo é tão amplo que a discriminação atravessa as classes sociais. A coordenadora da Fundação Santa Sara Kali, Mirian Stanescon Batuli, uma orgulhosa e bem vestida Kalderash (ramo dos Rom que, segundo o antropólogo Doonen, proclama-se autêntico e nobre), “filha de cigano rico”, diz que o preconceito começa na infância:
- Se sumia uma caneta na sala, a primeira pasta revistada era a minha. Até chegar na faculdade foi assim.
Ela conta que quando estudou advocacia, há 33 anos, o preconceito vinha dos próprios ciganos:
- Eu era alvo de chacota nas festas ciganas. “Lá vem a doutorinha”, diziam.
Sobre a possibilidade de cotas para ciganos nas universidades, Mirian defende posição polêmica:
- Se 99% do meu povo é analfabeto, vou lutar por faculdade? Quero uma unidade médica onde tenha uma mulher para tocar nas ciganas. Elas não vão porque os maridos não as deixam serem tocadas por um homem. É mais fácil colocar uma ginecologista do que mudar uma cultura - raciocina.
E, dirigindo-se aos gadjes, fulmina:
- Do mesmo jeito que vocês têm medo da gente, nós temos medo de vocês.
ALCEU LUÍS CASTILHO
Agencia Reporter Social
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