terça-feira, 23 de outubro de 2007

Em busca de Tarabatara


por Lila Foster

Em 2005, quatro amigos partem para Alagoas numa viagem de pesquisa para a realização de um filme. Com uma câmera Super 8 e equipamento de som, uma idéia inicial ia tomando forma na busca por uma experiência vinculada à geografia humana e física do lugar, e também por uma relação intensa de amizade entre os quatro, no compartilhamento de sonhos e noites de conversa sobre cinema embaixo do céu estrelado. Nessa andança, encontram um grupo de ciganos. Movida pela paixão pela vida cigana alimentada desde a infância (imagens dos ciganos em Campinas e na Sérvia), uma delas se aproxima do líder do grupo e pede para acampar por uma noite perto das tendas. A noite na fogueira, a conversa com o velho de mãos largas apelidado de Tarabatara, o cantar do “filho aluado” – todas as palavras, imagens e gestos marcam o grupo de forma tão forte que partem com a promessa de que voltariam.

Foi essa promessa de retorno unida à necessidade de garantir uma estrutura para passar mais do que alguns dias junto ao grupo que incentivou Julia Zakia (a menina encantada por ciganos) a escrever um roteiro de documentário para o Prêmio Estímulo do Governo do Estado de São Paulo. Baseado nas primeiras imagens produzidas ainda em 2005, o projeto foi contemplado no fim de 2006 e logo começou a ser produzido em parceria com Patrick Leblanc da Superfilmes. Equipe já formada, Julia partiria para Carneiros, Alagoas, junto com os outros três amigos (Gui César, Guile Martins, Laura Mansur).

Antes da partida, o filme estava totalmente em aberto. Nas conversas que tive com Laura, sempre com muita excitação e uma pitada de medo misturado com ansiedade, divagávamos sobre o que parecia incontrolável: será que eles encontrariam os ciganos? O filme seria sobre uma busca ou sobre o encontro? Como os ciganos iriam receber a equipe? Como seria passar dois meses junto com os companheiros de trabalho e os ciganos? Para quem observava o processo de fora, o filme parecia um salto no escuro: não existia nada de garantido além do desejo de encontrar o grupo de ciganos e o velho Tarabatara.

Na mala, além dos equipamentos, eles carregavam figurinos, fantasias, instrumentos musicais para uma mini-peça que pretendiam encenar nas pequenas cidades e feiras no caminho em busca dos ciganos. Nas palavras de Laura, o teatro “era uma maneira de trabalhar em grupo (e não só viajar), de ocupar nossas cabeças e corpos já com a magia das artes, e de chacoalhar um pouco de cultura e sonho em cada lugar do sertão nordestino”. Mas isso não aconteceu, pelo menos da forma como fora imaginado.

O ponto de partida escolhido foi Senador Rui Palmeira, a cidade na qual encontraram o Velho e sua família. Já na primeira volta, viram um dos integrantes do bando que indicaria o caminho para o acampamento. No fim da tarde, depois de 2kms de caminhada e com o sol já baixo, Julia, Guile e Gui avistaram o acampamento cheio de barracas, lonas e mulheres de vestidos coloridos. As primeiras imagens captadas em Super 8 (ainda de “tocaia”, nas palavras de Julia) foram ansiosas, assim como o primeiro encontro entre a diretora e o Velho que a reconheceu assim que ela chegou. Ainda sem falar sobre a filmagem, a equipe montou o seu rancho: uma lona para equipamentos e equipe no que seria uma casa de portas sempre abertas por dois meses.

Na primeira semana, a câmera não entrou em cena. O teatro foi uma forma de aproximar e explicar ao grupo de ciganos a motivação daquele encontro. Foi neste momento que mostraram a câmera, encenaram as suas funções e o seu envolvimento com cinema. A partir daí, a equipe começou a filmar o cotidiano das famílias, tendo em mente imagens e sons que deveriam ser captados – e um cronograma de filmagem. Apesar do preparo, a experiência da filmagem não estava engessada neste planejamento prévio. Se ia sim com um planejamento, o filme não tinha um “objetivo”, uma idéia a ser provada, um protocolo de ação. Assim, sem excluir uma organização da experiência, delineava-se um princípio ativo (talvez o que existe de mais rico no trabalho desse grupo): permitir que a experiência coletiva despertasse as imagens e os sons da forma mais natural possível. Antes de qualquer coisa existia a interação, o processo de troca entre os ciganos e a equipe, o tempo que teria que passar para que as relações se tornarem mais entregues.

Entre as conversas com os ciganos em volta da fogueira ou à noite antes de dormir, o trabalho foi ganhando “questões” muito vinculadas ao que se observava e vivia: o trabalho intenso das mulheres (descobriram que elas tomam conta de tudo no acampamento: buscar lenha, fazer comida, cuidar das crianças....), sempre com vestidos coloridos e pente na cabeça; as crianças fogueteiras que deram uma energia (e trabalho) não imaginada para o cotidiano; os momentos-limite de choque, não enfrentamento, com a tradição dos ciganos; e até mesmo a transformação desta tradição.

As filmagens acompanharam o que Julia descreve como um período de fortes mudanças para o grupo de ciganos. Por uma série de motivos, dentre eles o cansaço, pela primeira vez o grupo fixou um lugar para ficar por tempo indeterminado alterando o que seria o “cristal daquela sociedade”: a mudança, o nomadismo, a circulação pelo sertão. A fantasia e o sonho estavam sempre juntos com a realidade mais imediata e urgente.

Acompanhar tudo isso de perto não se deu sem medos e contratempos. Um deles foi a adaptação física ao novo espaço: dormir sem portas, alimentação diferente, banho uma vez ou outra. Doenças rondaram a equipe, mas nada que o cuidado com o outro, o eventual soro no hospital, e alguns dias na pousada mais próxima não fosse capaz de resolver. Lidar com as diferenças, a desconfiança mútua inicial, todo o processo de adaptação (com os ciganos e com a equipe) também foi algo que exigiu muito de todos, mas isso transformou o processo do filme mais fascinante principalmente pela coragem exigida.

Nas palavras de Julia: “...cada um da equipe viveu uma experiência, para o filme viver em dobro, mais que dobro. As amizades preferidas, os olhares escolhidos pra filmar, a voz de quem cantando, do cigano cantador, as saias das mulheres. Essas imagens foram nos guiando e também um planejamento de o que filmar do cotidiano, que horas tirar a câmera, as entrevistas noturnas, os acasos, o momento de ir dar uma investida no Velho. Todas as relações mudaram muito, a nossa pessoal da equipe, com cada um deles, e isso às vezes assustava um pouco, porque era muito de repente e de muitos altos e baixos. (...) Não ter teto e porta, e conviver com tanta gente, de todas as gerações, mais os animais, os costumes e os horários, se calar diante de tradições que fazem doer a alma, e outras que fazem chorar de alegria, de fazer parte dali.”

Em dois meses a proximidade era tanta que as mulheres trocavam confidências, Guile e Gui organizaram a gravação do show de um grupo musical dos ciganos e todos já tinham o seu lugar na roda de dominó. Aos poucos a ansiedade do início cedeu lugar ao medo da partida, que ia assumindo a forma de uma saudade antecipada e uma vontade de ficar.

Na volta para São Paulo, eu, que acompanhei de longe a gestação do projeto, aguardava ansiosa pelas histórias. E aqui é impossível não assumir que se trata de um relato feito por uma observadora amorosa. Gui César, Julia Zakia, Guile Martins e Laura Mansur são pessoas próximas de mim, e muito embora essa proximidade possa ser matizada (alguns me acompanham através de seus filmes, outros por conservas sobre cinema, a amizade e Laura é minha amiga de vida inteira), é inegável a força lançada no mundo por esses jovens realizadores.

Tarabatara é mais um filme do grupo Gato do Parque, que conta também com Hélio Villela Nunes (montador de Tarabatara). São amigos que dividiram teto, caminhos e funções nos curtas O Espetáculo Democrático (Gui César), O Chapéu do Meu Avô e A Estória da Figueira (Julia Zakia), Sobre a Maré (Guile Martins) e Chorume (Hélio Villela Nunes). Pela forma de (vi)ver o cinema em grupo, mas também pelo resultado já visto nestes trabalhos anteriores, esta amorosa observadora aguarda ansiosa as primeiras imagens deste novo trabalho – mas certamente não só ela, e sim todos que acompanham de perto os curtas brasileiros.







Fonte Revista Cinetica