quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Livros

No lançamento dos livros: Que Sorte, Ciganos na Nossa Escola, colectivo e Minoria e Escolarização: o Rumo Cigano de Jean-Pierre Liégeois

Os dois livros que aqui apresento integram a já longa lista de livros da colecção Interface. São duas publicações que nos convocam para uma melhor compreensão da etnicidade cigana. É em tomo da escolarização de uma minoria étnica que as diferentes narrativas se desenvolvem. Mas são igualmente feitos de história, experiências, e projectos que se alicerçam no desejo de construir, erguer no presente um futuro diferente. Quando procuramos saber o que habita no interior de Que Sorte, - Ciganos na Nossa Escola descobrimos, entre muitos outros, documentos de estudo e reflexão acerca da "Memória histórica, presente e futuro do Povo Cigano", deparamo-nos com "Um Olhar Cúmplice" acerca da escolarização das crianças ciganas, com a necessidade d "A Formação de Professores para a Diversidade ". Igualmente de experiências, projectos, mediação, formação profissional, associativismo, arte, música, de vidas com e sem rumo, é feito este livro. E porque é necessário " Dar a vez e a voz ", aqui tem de ser evocado um relato de uma história de vida. Diz quem escreveu sobre Calói que se trata de "um estudo de caso "...

Calói é uma criança com 12 anos, olhos castanhos-escuros, cabelo preto um pouco desgrenhado e com um tom de pele tão escuro que um dia uma senhora lhe perguntou se era indiano.

Calói não é um caso, é um exemplo de muitos casos que se podem encontrar, numa das muitas barracas existentes de Norte a Sul de Portugal. Pode estar na Feira Velha em Moura, numa das inúmeras barracas existentes no Conselho de Reguengos de Monsaraz, já não está em Vila Verde, pode ser encontrado em Olival no Conselho de Vila Nova de Gaia. Calói vive em Lisboa numa barraca. Vive com os pais e mais três irmãos. Calói, as duas irmãs de três e quatro anos e o irmão com dez anos dormem no chão da única divisão que a barraca possui, para além da cozinha. Não têm água canalizada nem luz eléctrica. Calói não toma banho frequentemente, lava a cara e penteia o cabelo com a água que vai buscar a uma conduta pública. Calói vive a 2,5 km da escola, não tem por isso direito a passe social. Às vezes a mãe não tem comida para lhe dar: não almoça, não lancha, não janta. Não participou numa visita de estudo porque não tinha dinheiro para as senhas de transporte. Foi um dia castigado pelo que não fez e é gozado pelos colegas. Calói é cigano. Mas Calói tem um sonho, deseja um dia poder ter um quarto só para ele e "tirar a carta". É necessário debelarmos os males que tanto afligem e prejudicam Calói. Assim os seus sonhos agigantar-se-ão.

A minha história de vida, nomeadamente da minha infância, é diferente da de Calói, mas particularismos existem, numa e noutra, que não as tornam globalmente dissemelhantes. A escola modificou a minha vida, não apagou as minhas memórias e tornou plural o meu sentido de pertença. Os meus sonhos, por causa da escola onde entrei e de onde nunca mais saí, não pararam de se realizar: um sonho precede outro, de forma incessante. Quando tomamos conhecimento, através da leitura das páginas deste livro, de muitas das acções realizadas, de imediato constatamos que algumas das acções aqui narradas se desenvolveram num registo de improvisação pedagógica. A improvisação pedagógica é muitas vezes um elemento de bloqueio e de fracasso que consequentemente dá origem ao desencorajamento. Muitos professores que procuram a inovação, que desenvolvem práticas pedagógicas no sentido de adaptar a escola às crianças que acolhem, sentem-se muitas vezes sem apoio institucional, isolados uns dos outros e marginalizados pelos restantes colegas. A acção e a situação destes professores, em muitos contextos escolares, não são fáceis. A imprevisão pedagógica emerge, em muitos casos, nestes contextos e pelas razões supra-mencionadas. Raras vezes estes professores recebem informação e formação de qualidade, responsável e reflexiva, que são fundamentais tendo em conta as condições globais em que ensinam e as qualidades, pedagógicas e não só, que um ensino adaptado e respeitador exige.

É, por tudo isto, que Que Sorte, Ciganos na Nossa Escola parece provocação, como diz o Dr. Miguel Ponces de Carvalho numa das primeiras páginas deste livro. Sinceramente não acho que pareça uma provocação, é uma provocação! É uma excelente provocação. Porque este livro permite confrontar experiências, faz apelos questionadores das nossas práticas pedagógicas, dá a conhecer igualmente boas práticas e exige que se crie uma estrutura simples - que não deve ser de especialistas, altamente especializados em especialidades especiais, normalmente segregadoras - uma estrutura dizia, de educação escolar, constituída por professores/pessoas competentes (devidamente formadas e mandatadas) para ajudar, informar e coordenar acções a nível local, regional e nacional. Seria um passo muitíssimo importante, que muito poderia contribuir para a escolarização das crianças ciganas.

E esta é uma das muitas recomendações que é feita no relatório apresentado por Jean- Pierre Liégeois à Comissão Europeia, para além do recrutamento e formação de técnicos auxiliares de acção educativa de etnia cigana, bem como a formação de mediadores ciganos, precisamente no segundo livro que passo a apresentar: Minoria e Escolarização: o Rumo Cigano de Jean-Pierre Liégeois. É um relatório-síntese de um estudo realizado pela Universidade René Descartes de Paris, por solicitação do Parlamento Europeu. "Foi feito de forma intensiva em 1984 e 1985. Através de uma rede coordenada de peritos dos diferentes Estados-Membros, esta investigação conduziu à síntese de trabalhos existentes, à consulta de famílias, de organizações ciganas e de professores e à análise de centenas de documentos e de realizações". Infelizmente este estudo não contemplou a realidade portuguesa. O tema é a escolarização das crianças ciganas, e é um estudo importante, actual e inovador. Mas é um estudo importante, actual e inovador porquê? Porque a escolarização das crianças ciganas, através da reflexão que suscita e das práticas pedagógicas a que pode conduzir, poderá fazer emergir um conjunto de saberes que se tomam proveitosos para a escolarização de todos. Neste seu livro Jean- Pierre Liégeois diz que o futuro das comunidades ciganas depende, em grande parte, das modalidades de escolarização utilizadas com estas crianças. É por isso que este livro é simultaneamente uma análise e uma reflexão sobre ideologias, designadamente políticas, e sobre as práticas que as inspiram.

Estou de acordo com Jean- Pierre Liégeois quando diz que, globalmente, a escolarização das crianças ciganas tem sido, até agora, um fracasso.

Na sua maioria as crianças de etnia cigana não completam a escolaridade obrigatória. Diz-nos que a cultura cigana é uma cultura de resistência e que a sua secular capacidade de adaptação remeteu-os para uma tradição de mudança, mudança dentro da tradição. As grandes transformações económicas, políticas e sociais das últimas décadas, designadamente as que se relacionam com os grupos sociais e culturais considerados " desfavorecidos ", "minoritários ", "marginais", entre outros, obrigaram os ciganos a desenvolver novos meios de adaptação. Esta nova realidade obriga as diferentes comunidades ciganas a renovadas adaptações no caso de pretenderem manter uma relativa independência económica e cultural. Para conseguir estes objectivos, diz o autor, muitas comunidades ciganas começam a procurar a escola porque somente a escolarização lhes permite "tirar a carta", como referem. A resistência cultural cigana, também aqui se manifesta.

Para não serem absorvidos pela cultura dominante, a única defesa dos ciganos é utilizarem a escola sem se renderem a ela.

Uma análise critica das condições de escolarização das crianças ciganas facilmente nos remeterá para as seguintes duas considerações, como refere Jean- Pierre Liégeois: primeiro, os ciganos não são um "problema social" nem um "grupo problemático"; em segundo lugar a " questão escolar" é mais um problema de ordem política e económica, do que um problema de escola e de pedagogia, na medida em que o seu peso é relativo quando compreendido numa realidade que é muito complexa. A questão cigana é mais um problema da sociedade do que um problema pedagógico. As políticas foram sempre, no que se refere aos ciganos, políticas de negação das pessoas e da sua cultura. As diferentes políticas podem ser agrupadas, segundo Jean- Pierre Liégeois, em tomo de três grandes categorias: a exclusão, a reclusão e mais recentemente a inclusão. Não se excluindo mutuamente, estas políticas, do ponto de vista histórico, evoluíram da exclusão para a inclusão. Como são caracterizadas estas políticas? Para o Autor as políticas de exclusão das comunidades ciganas caracterizavam-se pela expulsão, proibições diversas e punições. Punições que passavam pela marcação com ferros em brasa, enforcamento etc. A política de exclusão irá transformar-se em políticas de reclusão. Esta política é entendida como a integração, de forma autoritária e geralmente violenta, dos ciganos na sociedade que os rodeia. A falta de braços remete-os para as galés, a resistência dos ciganos às políticas de reclusão tornam lícito disparar sobre eles e privá-los da vida. Mas também esta política se manifestou globalmente ineficaz, surgindo a partir da segunda metade do séc. XX as políticas de inclusão. Independentemente dos eufemismos utilizados, estas políticas caracterizam-se, no fundamental, pela vontade de assimilação dos ciganos, como é demonstrado pelo nosso Autor. As imagens que se construíram acerca dos ciganos tendem a apagar/ignorar todos os aspectos culturais e a fazer emergir os ciganos como um "problema social". As imagens que se constroem e que se cristalizam fazem deles um "problema social", é necessário "reintegrá-los" no resto da sociedade. Manifestam "inadaptações sociais" quando se pretende inclui-los, razão pela qual as políticas de inclusão consideram a necessidade de os inserir no espaço social e esquecer o seu espaço cultural e étnico.

Estas políticas tendem a construir um cigano imagético e não real: o cigano não é definido como ele é, mas sim como é necessário que seja, por motivos de ordem sócio-política.

Para o Estado, diz Jean- Pierre Liégeois, as políticas de inclusão apresentam vantagens face às da reclusão. Baseiam-se no espírito da época, são politicamente correctas, mais eficazes, mais radicais, mais igualitárias e o incluso é recompensado pelo seu alinhamento. A "integração social" é benéfica e compensatória.

Todos acham que conhecem os ciganos, diz Jean- Pierre Liégeois. E de uma forma geral são poucos os que não exprimem de uma forma categórica o seu conhecimento dos ciganos. Existem mesmo, entre nós, "especialistas" que falam sobre as questões ciganas. Mas na realidade o que se tem são ideias que se foram construindo sobre os ciganos a partir do século XV e que se foram rapidamente cristalizando sob a forma de estereótipos. Os ciganos são pouco conhecidos. Na realidade o que se manifesta mais em relação a eles é um certo romantismo ou alarmismo, e o pior é que na maior parte das vezes a realidade é largamente ultrapassada pelo imaginário. A assimilação ou a rejeição constroem argumentos para os seus discursos e justificações para os seus actos. As atitudes menos negativas para com os ciganos expressaram-se e expressam-se pela simpatia romântica ligada ao folclore, ou uma certa curiosidade intelectual mesclada de compaixão, mas logo que a oportunidade surge são de imediato reactivados os aspectos mais negativos das imagens que se criaram dos ciganos. O cigano imaginado, as imagens manipuladas são representações que nos remetem para a necessidade de questionar a nossa relação com as comunidades ciganas. Foi no âmbito das políticas multiculturais de assimilação que se desenvolveu a noção de "dificuldades de adaptação" aos contextos sociais e culturais, se construiu a ideia de aluno "instável, "atrasado", "inadaptado". Rótulos que têm regras processuais de funcionamento que são estigmatizantes para as crianças ciganas. Estas teorias, sendo efémeras e já contraditadas, persistem em existir, como refere o nosso Autor. A integração é um mal necessário, defendem alguns. Jean É uma concepção etnocêntrica que se desenvolve segundo o seu próprio ponto de vista, num espírito contrário ao que postula a educação intercultural. E esta postula que o pluralismo cultural só se transforma em interculturalidade se as trocas forem igualitárias. Para a criança cigana os significantes utilizados na escola não remetem para nenhum significado.

A criança está habituada a manipular realidades concretas e simbólicas que não correspondem às da escola, não está preparada para ter sucesso numa escola que não se adapta a ela, que valoriza registos diferentes dos seus.

Os conteúdos de ensino e possivelmente as formas de o apresentar não são adequados porque não emergem de uma pedagogia "centrada sobre aquele que aprende". Jean- Pierre Liégeois escreve: uma criança não pode levar duas experiências sociais e culturais paralelas, saltando de uma para a outra cada vez que passa a porta da escola. Numa concepção intercultural da escola são as características da criança que devem servir de base as opções pedagógicas e não um obstáculo, como acontece quando são desvalorizadas. Sendo assim, aceitar a criança cigana na escola significa ter em conta o que se passa fora da escola, nos diferentes domínios económicos, educativos, habitacionais, entre outros, em que a criança vive. A cultura cigana quando se expressa na escola aparece quase sempre como um "anexo" e de uma forma geral manifesta-se através do folclore. Uma escola intercultural deve mostrar-se flexível na sua estrutura e funcionamento de forma a permitir que culturas diferentes se exprimam de formas diferentes.

A educação intercultural continua a ser um projecto. Um projecto que se deve consubstanciar numa "pratica social vivida". A interculturalidade não pode visar uma hibridação intelectual dos alunos, através da manipulação pedagógica, mas antes o seu enriquecimento e a compreensão mútua por meio de aprendizagens baseadas nos antecedentes culturais da cada um deles, diz Jean- Pierre Liégeois. A manipulação folclórica é muitas vezes feita sob a capa de uma interculturalidade mal compreendida, de elementos culturais próximos dos estereótipos: dança, musica, culinária não podem ser separados da compreensão dos respectivos contextos. Não necessitamos de falar de pedagogia intercultural para valorizar tudo o que vai no sentido da aceitação do outro. O papel da escola é esse, deverá ser esse: participar na valorização e na compreensão das diferenças e transformar os antagonismos em diferenças mais bem compreendidas.

A interculturalidade permite que indivíduos diferentes vivam a sua diferença sem, no entanto, ficarem reduzidos a ela.

É uma "ferramenta de negociação". A pedagogia da interculturalidade edifica-se quando os objectivos são as aprendizagens de base úteis para a criança, para uma adaptação activa ao seu meio, que lhe permita fazer parte dele e ser sujeito da sua existência. A educação intercultural constrói e implica uma atitude simultaneamente receptiva e criativa de toda a comunidade escolar. Neste livro está claro que os desafios que a interculturalidade nos coloca nada têm a ver com a formação de professores "especialistas" em cultura cigana ou de outra qualquer. Os professores devem ser formados para o acolhimento da diversidade através da flexibilização dos conteúdos, sem ideias preconcebidas sobre as crianças. A sua formação deverá ser concebida de forma a não ser, ou ser o menos possível, um agente de aculturação.

A formação inicial e contínua de professores merecem de Jean- Pierre Liégeois o seguinte comentário: é necessário ter cuidado com as práticas aqui desenvolvidas. Normalmente as instituições do ensino superior, por razões diversas e complexas, desenvolvem políticas formativas que padecem de alguma ambiguidade, ambiguidade esta que acaba por remeter os formandos para menus formativos em que se aprende a "domesticação em conformidade". Sobre o papel dos investigadores Jean- Pierre Liégeois refere a sua extrema importância para a edificação de um novo olhar sobre as comunidades ciganas. Deveremos, no entanto, também aqui estar atentos, como diz o Autor, e assumir uma atitude reflexiva e critica no sentido de denunciar estudos que, partindo de textos africanistas e/ ou americanistas, fazem generalizações abusivas, perigosas e falsas sobre as comunidades ciganas. É importante referir, diz Jean- Pierre Liégeois, que a posição do investigador no domínio cigano não é fácil. Este livro é uma fonte de conhecimentos, uma memória de factos, um excepcional documento de referência. Faz recomendações, apelos à necessidade de concertação, de mediação, de coordenação, de flexibilidade, de estudo, de reflexão e avaliação.

Carlos Jorge Sousa