sexta-feira, 11 de abril de 2008

MORTE

A morte é uma curva na estrada.

Morrer é só não ser visto.

Fernando Pessoa

F

alemos da morte... É um terror que nos afeta, é a origem de nossos piores pesadelos, mas na verdade ela é nossa garantia de vida. Imagine que nossa vida só vale porque sabemos que morreremos algum dia e que seja muito longe esse dia. Se a morte não existisse, a vida seria uma chatice imensa, uma monotonia inefável, um sonho mau, sem fim: a não-vida. Já imaginou este mundo sem a bendita morte? Os matusaléns se arrastando por aí; os doentes terminais que jamais terminariam o seu sofrer; os acidentados; os queimados... Isto sim, seria um horror. Acho até que aquele pensamento de René Descartes: Cogito ergo sum careceria de sentido ontológico se não existisse a morte. Assim, considero a morte a mais justa da condição humana. Deus foi piedoso ao nos conceder a mortalidade. Ele, sapientíssimo, boníssimo, sumo da justiça deu ao homem a vida e a morte: o círculo, o Samsâra. São partes deste círculo as fases: nascer, crescer, trabalhar, vencer (ou ser derrotado) e... morrer. Alguns até admitem o renascer mas fiquemos por aqui. Na verdade, ao morrermos nascemos para a vida eterna.

Quando eu me for (não ficarei para semente), não chorem por mim (isto caso haja alguém com esta intenção), considerem que a renovação humana é necessária. Eu terei cumprido meu destino (bem ou mal). Digo destino, porque tudo estava escrito. Eu não tive livre-arbítrio (ninguém o tem). A morte é só um evento e conseqüência da vida. Sobre morto e morte os ciganos têm uma visão pragmática digna de registro. Ela (morte) e o morto não se leva em conta; a vida, sim é importante. Anoto um diálogo de George Borrow, sábio, pregador, inglês, que dominava mais de cem idiomas (o Romani também), quando foi reconhecido por um antigo amigo cigano, após alguns anos de ausência. O diálogo está às p. 165/166, no livro Lavengro (mestre das palavras):

“Eu vagava por uma charneca e cheguei a um lugar onde um homem estava sentado perto de árvore nodosa, seus olhos intencionalmente voltados para o sol vermelho que ora se punha”.

    É você Jasper?’

    Verdade, irmão!

    Não nos vemos nos últimos anos.

    E deveríamos, irmão?

    O que o traz aqui?

    A luta, irmão.

    Onde estão as tendas?

    No lugar de sempre, irmão

    Alguma novidade desde que parti?

    Duas mortes irmão.

    Quem morreu, Jasper?

    Papai e mamãe, irmão.

    Onde eles morreram?

    Onde foram enviados, irmão.

    Onde está a senhora Herne?

    Está viva, irmão.

    Onde está agora?

    Em Yorkshire, irmão.

    Qual é a sua opinião sobre a morte, senhor Petulengro? Eu disse enquanto sentava ao lado dele.

    Minha opinião sobre a morte, irmão é a mesma dada pela antiga canção do Faraó, que ouvi minha avó cantar:

      Canna marel o manus chivios ande puv,

      Ta rovel pa leste o chavo ta romi.

      [quando um homem more é enterrado

      Seu filho e sua mulher pranteiam por ele]

Quando um homem morre, ele é jogado na terra, sua mulher e criança lamentam por ele. Se ele não tem mulher e filho, então choram seu pai e mãe, suponho; mas se ele é só no mundo

Então ele é enterrado e não se fala mais neste assunto.

    Você pensa que este é o fim do homem?

    É o fim dele, irmão, mais é piedade.

    Por que você diz assim?

    A vida é doce, irmão

    Você pensa assim?

    Penso assim! Há a noite e o dia, irmão; ambos coisas doces; o sol, a lua e as estrelas, irmão: tudo coisas boas. Há, igualmente, o vento e calor. A vida é muito doce, irmão, quem desejaria morrer?

    Eu desejo morrer ——

    Você fala como (górgio) não-cigano, que é o mesmo que um tolo. Se você fosse um romani você falaria sabiamente. Desejo de morrer... verdade! Um romani Chal (cigano) desejaria viver para sempre!

    Mesmo na doença, Jasper?

    Há o sol e estrelas, irmão.

    Na cegueira, Jasper?

    Há o vento e o calor, irmão; se eu puder somente senti-los, eu me alegraria em viver para sempre. Basta! Vamos entrar agora em nossas tendas e pôr nossas luvas. Tentarei fazê-lo sentir como é bom viver, irmão.

Nesta conversação, podemos sentir a simplicidade do cigano, para o qual a alegria de viver é tudo. Ele vive intensamente o dia-a-dia e não se importa com o além, com o amanhã e com o ontem, segundo sua filosofia:

Amanhã será o que tem que ser; ontem foi o que tinha que ter sido. E, basta!

Para que não se diga que externo opinião pessoal vou, em seqüência, transcrever do livro de Jean-Paul Clébert o que ele nos ensina sobre tema tão sombrio (morte) e como ciganos de diversos grupos encaram tal dilema. Está escrito em The Gypsies, subitem Death and funeral rites, pp. 187/188/189.

    Cigano não morre na cama. Como alguns povos como esquimós [inuits] que fogem da vista de outros para morrer, na neve. Como prova final de desapego, o cigano entrega sua alma fora da tenda ou da caravana. Não mais do que o nascimento, pode a morte poluir o lar, mesmo temporariamente. Assim, a mulher dá à luz em frente à tenda ou caravana. A regra, mesmo para a pessoa morrendo, é que a porta deve estar escondida atrás da tenda, ou então em um buraco feito na parede da choça. Obviamente, o uso de caravana destruiu este rito. Durante a doença de Mimi Roseto, a matriarca dos ciganos piemonteses, os membros da família tiraram-na da cama e a puseram em um colchão ao chão, do lado de fora.

    Os serviços funerários começam antes da morte, à luz de vela e som de lamentações. Mas, geralmente os assistentes se conformam em esperar, sem mostrar demasiada emoção; a qual não é mostrada externamente, até depois da morte. Os indivíduos continuam o ‘papo’, fumam e bebem diante da pessoa que está morrendo.

    O corpo do defunto é lavado em água de sal (ciganos da Inglaterra), é vestido com novas roupas, freqüente um grande número (cinco, saias se mulher). Entre os kalderash, a pessoa que morreu, é preparada, se viveu assim, durante a vida. O padecente tem a satisfação de se ver bem vestido para a ‘grande-jornada’.

    Anunciada a morte, a tribo inteira começa a lamentar e chorar, mesmo gritando. Homens e mulheres soluçam e choram amargamente, mostrando muita tristeza e não há razão para acreditar que sua dor seja fingimento. Entre alguns grupos, as lamentações continuam a noite inteira e então trocam o ritmo do canto. Suas faces são literalmente contorcidas pelo sofrimento. Mesmo crianças gemem como se tivessem sido surradas.

    O rasgar de roupas começa algum tempo depois da morte, algumas vezes três dias após, o corpo é colocado no caixão, mãos cruzadas no peito ou ao longo do corpo (ciganos cristãos dos Bálcãs). Os ciganos ingleses e escoceses põem jóias no morto e alguma moeda de ouro na urna. De acordo com Jules Bloch, com eles são colocados alguns objetos úteis para a jornada no outro mundo: garfo, faca, violino... Anteriormente, entre os ciganos espanhóis, uma guitarra ou mandolim foi colocada nos braços de um falecido. Então, um membro de sua família acusou-se em voz alta de ter cometido pecados e desafiou-o: “toque e se fiz errado, possa sua música tornar-me surdo; mas se fiz certo, não se mova e receberei absolvição.”

    Antes do enterro, nos Bálcãs o morto é carregado em uma eça e exibido pelas estradas ou ruas. Na Romênia e Rússia ele é levado sem cobertura, isto é usado na Europa Ocidental.

    O enterro tem diversas formas. Há influências cristãs e muçulmanas. Se o cigano for católico, o enterro é feito conforme os ritos da igreja, mas os detalhes permanecem típicos dos ciganos. Assim, em adição à mão de terra, jogada sobre o caixão, algumas vezes moedas o notas são jogadas. A aspersão de água é feita à mão, o aspersor não é usado. Na Inglaterra isto assume inesperada feição: a água é substituída por cerveja. No túmulo do famoso Boswell, um cigano-chefe que morreu em 1820, em Doncaster, os acompanhantes derramaram um jarro de chope. Este ato foi repetido durante anos, na ocasião da peregrinação ao cemitério. Na Europa do Leste os assistentes bebem vinho em volta do túmulo do morto, brindando: ‘Te avel angla ei (Parni), ei sev le (feroski); em honra de (Parni), daughter of (Fero)’1

    Jules Bloch nos dá surpreendente descrição do funeral de uma mulher morta em Londres, em 1911: ‘... Antes de arriar o caixão, um buraquinho foi feito nele, adiante do pé esquerdo. Isto pode ser comparado com o costume romeno, onde são feitos dois buracos acima da cabeça, para respiração e de acordo com uns e outros, para ouvir melhor as lamentações. Uma vez que o caixão tenha sido baixado, o chefe derrama um pouco de rum ao lado do caixão, degusta, ele mesmo, o rum e passa a garrafa em volta.’

    Usualmente, músicos tocam seus instrumentos durante a descida à sepultura. Algumas vezes, durante a transferência para o cemitério, parentes distribuem dinheiro para as testemunhas, especialmente crianças. Entre alguns grupos, crianças não assistem funerais.

    Para ter certeza que a morte realmente ocorreu, os kalderash de Paris e da Suécia (?) furam o coração de o morto com longa agulha. Isto é um rito ordinário pra proteção contra fantasmas ou mulé, o que chamamos alma.

    No passado, principalmente na Europa Central, o real rito funerário de um chefe cigano tomou um caráter mais simbólico: o defunto foi colocado em um carroção pintado de branco com intenção que ele faria a jornada de migração em reverso (retorno). Isto pode demorar um longuíssimo tempo, quando muitas fronteiras têm de ser cruzadas. Então, o rasgar de roupas aconteceu em segredo total, e nenhum não-cigano pode estar presente.

    Outro costume que está desaparecendo, que nos parece baseado em nada, mas suspeito contar, teria a pessoa morta de ser lançada em um rio. O escritor germano Achim von Arnim, na sua história, Isabella do Egito, usou [esta lenda] em ritos funerários ciganos (suas fontes não foram checadas) e registrou que quando um cigano é enforcado, seus companheiros pegam seu corpo durante a noite e deixam-no ser levado pela corrente de um riacho ‘a fim de que ele possa encontrar seu povo’. Finalmente, é certo entre as tribos da Ásia Menor que depois de alguém ter morrido, uma jovem discretamente dirige-se sozinha ao banco de um rio e faz deslizar pequena prancha, onde pôs vasos nos quais beberam e acenderam velas. Esta tradição parece ser de origem indiana.

    Alguns ciganos quebram o dedo mindinho do morto, antes de pô-lo na cova e com linha vermelha amarram ao dedo quebrado um pedaço de prata. Isto é relativo à tradição do óbolo de Caronte.

    Após o enterro, é necessário repartir as roupas e coisas pessoais do morto. Aqueles que podem ser descartados da caravana, são jogados, queimados, ou... vendidos. Em todos os casos nenhum membro da tribo herda nada dele. É possível que o sacrifício de cavalos seja parte deste costume. Obviamente, queimar o carroção é um enorme sacrifício. Na maioria dos casos, os ciganos se satisfazem em repassá-lo para algum membro, de outra tribo ou ao mercador de ferro velho (sucateiro). Esta última concessão é aceitável: repintá-lo completamente, antes de usá-lo de novo como habitação.

    Permanece o assunto pra se proteger contra a possível volta do morto na forma de fantasma, vampiro ou mulé. Os ciganos húngaros colocam no túmulo um espinheiro, que é suposto evitar que o morto saia. Na Grécia, uma pedra pesada (freqüentemente confundida como lápide) preenche a função. Na Inglaterra, Irlanda e Escócia os ritos permanecem estanhos: é proibido pentear o cabelo, lavar-se maquiar-se por considerável período.

    Precisa-se ter capacidade para comparar estes costumes com europeus e o folclore do oriente-médio. A propósito, como exemplo, aqui é uma conexão que pode se estabelecida entre ritos ciganos da Espanha e os do País de Gales. Na Espanha, um leitor acabou de ver um membro de a família fazer autocrítica diante do túmulo; em Gales, eles têm ‘o bebedor do pecado’. Este é geralmente um pobre-diabo, pária, que sob pagamento em alimento, torna-se expiador de pecado, para o morto.

    Os ciganos não têm culto em cemitérios. Uma vez o enterro terminou, o lugar do enterro praticamente é esquecido. Somente os sintos2 vão regularmente ao túmulo dos que partiram, em dias santos de guarda; mas, o nomadismo e peregrinações freqüentes dificultam a visita. Quando acontece, os ciganos comem, bebem perto da sepultura, cuidando-se para não esparzir bebida e comida neles próprios.

    Mencionemos finalmente, os cantos funerais ciganos, que incluem alguns dos mais belos poemas. Eles são improvisadores e nunca repetem. Este caráter efêmero confere-lhes grande valor, mas como escrever estes salmodiosos cantos em voz grave, que cantam em repouso do morto e cheio de bazofias?

Vamos sintetizar o testemunho de Grellmann3. Ele nos ensina (tradução livre):

    Cigano morre de velho. É muito incomum morrer cedo ou ainda criança. O amor pela vida vai além de nossa capacidade em descrevê-lo, mesmo nas mais perigosas doenças. Eles acreditam nas forças da natureza ou na boa-sorte.

Hoje em dia os tempos são outros e ciganos já recorre a medicina dos gadjês, mas permanecem em vigília constante perto do hospital até que o rom tenha alta.

FINIS

Asséde Paiva

www.ciganosbrasil.com

abril, 2008