Gipsy Kings e o povo ROM
Stella Maris Mendonca e Pablo Kaschner
A origem do povo cigano � uma hist�ria cheia de mist�rios. Os documentos existentes n�o foram escritos por eles pois a caracter�stica principal de sua cultura � a oralidade e, al�m disso, sempre guardaram segredo de suas tradi��es numa tentativa de defesa da ra�a. Entretanto, � prov�vel que sejam do noroeste da �ndia (atual Paquist�o) e de l� tenham sa�do por pertencerem � casta dos parias, que trabalhavam como amestradores de animais, ferreiros e quiromantes, of�cios sem nenhum prest�gio dentro da hierarquia social hindu daquele tempo, por volta de 1.500 a.C. Outro ind�cio da origem indiana do povo cigano � a estrutura de sua l�ngua - o Romani, que � somente oral. No s�culo XVIII, foi provada a similitude entre o romani e o s�nscrito, a antiga l�ngua da �ndia. Por exemplo, a palavra rom, usada para designar cigano, � de origem hindu e significa homem ou pai de fam�lia, portanto, povo rom � o mesmo que povo cigano. Outra poss�vel origem do povo cigano � a eg�pcia, da� terem recebido os nomes gipsy, em ingl�s, e gitano, em espanhol. Na Gr�cia, receberam o nome de atkinganos, da� originando as palavras cygan, em polon�s; czig�ny, em h�ngaro; zigeuner, em alem�o; tsigane, em franc�s, zingaro, em italiano; e cigano, em portugu�s. A busca de um lugar ao sol Da �ndia os ciganos foram para a P�rsia e de l� chegaram � Europa Central, no s�culo XIV, espalhando-se rapidamente e formando diversas tribos. Na Gr�cia, muitos h�bitos e novas palavras foram adquiridos e, gra�as � grande quantidade de peregrinos que passavam pelo pa�s, conseguiram ser respeitados na sua condi��o constante de viajantes. Na Rom�nia foram escravizados durante cinco s�culos pelos propriet�rios de terras, pelo Estado e pelo clero, que os acusava de terem sido os art�fices dos pregos da crucifica��o de Cristo e, por isso, teriam de pagar sua culpa. Foi realmente um per�odo de muito sofrimento para um povo amante da liberdade. Em 1855, ao serem libertados, dividiram-se em novas tribos que se espalharam por diversos lugares. Apresentavam-se nas cidades como peregrinos crist�os com t�tulos de nobreza e, dessa maneira, conseguiam apoio e cartas de recomenda��o para as pr�ximas regi�es. Em troca liam as m�os, cantavam e tocavam instrumentos. Cada tribo tinha seu chefe, que fazia a apresenta��o do grupo � comunidade e resolvia as quest�es de sobreviv�ncia durante a perman�ncia naquele local. Jordana Aristitch, escritora e bailarina cigana, autora de A Verdade sobre nossas Tradi��es A princ�pio, sua sedutora magia conquistou os comportados cora��es europeus. Mas, com o tempo, essa atitude foi mudando e logo receberam adjetivos como "os perigosos", "os in�teis", "bruxos", "vagabundos inquietos". Na verdade, o que aconteceu foi um tremendo choque cultural porque mendigavam nas ruas e ajudavam as pessoas com adivinha��es, o que lhes conferia certo poder ao conhecer seus segredos. V�rios governos tentaram medidas "protetoras" no sentido de acabar com o nomadismo, por�m foi tudo em v�o pois eles aceitavam e continuavam suas vidas de viagem, enriquecendo-se de novas culturas e enfrentando o �dio, a explora��o da m�o-de-obra, a inveja e a admira��o dos artistas. Por onde passavam, sofriam a persegui��o de terr�veis leis, como a pena de morte, a fogueira, a escravid�o, torturas, pris�es e o degredo. Em Portugal era simplesmente proibido ser cigano pois a lei condenava a quiromancia, o nomadismo, a l�ngua romani, o uso das roupas exc�ntricas e o h�bito de morar pr�ximo uns dos outros. Dessa maneira, chegaram os ciganos ao Brasil - na condi��o de degredados. Portugal mandava para sua col�nia os elementos indesejados, criminosos e os que incomodavam a ordem social. Os primeiros a chegar, em 1574, foram Jo�o Torres com sua mulher e filhos, logo seguidos por muitos outros. Aqui continuaram sendo perseguidos pelos gadjes, os n�o-ciganos, e suas atividades tradicionais se misturaram �s oportunidades da col�nia, participando do com�rcio de escravos e da corrida ao ouro. E enquanto aqui se discutia a Aboli��o, na Rom�nia eles eram escravos. A hist�ria oficial do Brasil omite a participa��o folcl�rica e art�stica dos ciganos que, na �poca do Imp�rio, foram nomeados os festeiros da corte. Segundo especialistas, os ciganos que chegaram ao Brasil, entre os s�culos XVI e XIX, eram os calons, os ciganos ib�ricos. Posteriormente, milhares vieram para c� fugindo da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial, quando 500 mil ciganos foram assassinados pelos nazistas. Ao longo de todas as andan�as e gera��es, o povo se dividiu em tr�s grandes grupos (os Rom, os Manouche ou Sinti e os Kal� ou Calons) e em alguns subgrupos com seus respectivos dialetos e atividades. O grupo Rom, procedente da Iugusl�via, Hungria, Rom�nia, Turquia e Gr�cia, � o mais fechado e tradicional, n�o aceitando casamento com gadjes. Pertencem a essa tribo os subgrupos Kalderash, Lovara, Tchurara e Matchuaia, que possuem caracter�sticas pr�prias. Os Lovara s�o tratadores de cavalos, comerciantes de tapetes, ve�culos e sedas e s�o muito respeitados por sua sabedoria. J� os Tchurara s�o violentos guerreiros. Os Menouche vieram da Franca, It�lia e da Alemanha, e os Kal� s�o procedentes de Portugal e Espanha, os chamados ciganos ib�ricos. Atualmente, h� no Brasil cerca de 150 mil ciganos, e os mais prestigiados socialmente s�o os Kalderash. Os Calons se encontram espalhados entre emigrantes portugueses e espanh�is, enquanto os Matchu�ia, do grupo Rom, s�o os que mais negam a cidadania, fato que triplicaria o n�mero conhecido da popula��o cigana no Brasil. H� muitos artistas, pol�ticos, jogadores de futebol de origem cigana mas que n�o se assumem como tal. Assumir a origem cigana � uma postura pol�tica diante da sociedade e implica defender a hist�ria e a filosofia de vida de uma minoria �tnica. �s vezes, acontecem algumas revela��es p�blicas, como fez o m�sico e maestro mineiro Wagner Tiso. Apesar de tantas persegui��es e fugas, os ciganos t�m sobrevivido gra�as ao seu esp�rito indom�vel, sua postura arrogante e seus truques e segredos que defendem a ra�a de uma total desintegra��o. Atualmente, discutem se � melhor, para a preserva��o de sua cultura, colocarem-se � margem do sistema gadje ou integrarem-se a ele mantendo, contudo, a identidade cigana. Mas, afinal, qual � a identidade cigana? Al�m das constantes viagens, do amor � m�sica, � dan�a, � liberdade e da pr�tica da magia, esse povo tem um compromisso muito s�rio com a dignidade, com a palavra dada, com a fidelidade e a fam�lia. E por isso, podem chegar a atitudes extremas, como matar ou morrer. O culto aos antepassados, as peregrina��es feitas aos cemit�rios e os lutos prolongados mostram o orgulho de sua hist�ria. Por meio de encontros anuais em festas, como a do Divino, em Goi�s, ou em romarias a Saint Marie de la Mer, em maio, e � Virgem de Lourdes, na Fran�a, as tribos se encontram e atualizam suas experi�ncias. N�o h� registro escrito de nada porque para eles documentos s�o um limite � liberdade, assim como as autoridades, os hor�rios e a propriedade privada. Segundo pesquisa feita por Cristina da Costa Pereira, antrop�loga e cigan�loga, a rela��o com os propriet�rios de terra no interior do Brasil � muito tensa porque os acampamentos ocasionais assustam os fazendeiros que, apoiados pelas autoridades locais, entram em conflito aberto com os ciganos, gerando mortes e desaparecimentos. A alfabetiza��o e educa��o das crian�as s�o feitas dentro da pr�pria comunidade porque, al�m de n�o existir uma escola adaptada � condi��o n�made, h� o preconceito institucional em receber crian�as ciganas. Essa atual marginaliza��o pode acarretar conseq��ncias bem mais s�rias, como um fen�meno ainda desconhecido: a delinq��ncia cigana. Segundo Manuel Mart�n Ramirez, ex-presidente da Associa��o Nacional Presen�a da Espanha, em entrevista ao jornal El Pa�s, a carta dos Direitos Fundamentais das Minorias �tnicas, baseada na declara��o dos Direitos Humanos, reconhece a identidade do povo cigano e sua autonomia cultural, mas isso precisa ser acompanhado por medidas concretas de desenvolvimento e preserva��o hist�rica. Na Espanha, a nova estrutura urbana e o crescimento das cidades fazem desaparecer os bairros ciganos, quebrando, assim, uma caracter�stica tradicional, como � o caso do famoso bairro Sacramonte, em Granada, que vem sofrendo crescentes modifica��es. H� uma lenda cigana que diz que quando um velho guitarrista ou cantor cigano percebe que vai morrer, ele canta ou toca para uma mulher gr�vida. A crian�a que nasce vai herdar esse talento. E com voc�s, os Gipsy Kings! Quando a colaboradora da Radio Nederland, da Holanda, f� dos Gipsy Kings, soube que o grupo, que se apresentaria no Maracan�zinho, estava hospedado em um hotel de Copacabana, correu para l�. Segundo a recep��o do hotel, as credenciais para a imprensa j� haviam sido distribu�das, eles j� haviam concedido uma r�pida entrevista coletiva, j� haviam se retirado etc, etc. Ela, ent�o, viu uma escada atapetada, meio caracol, decidiu subir e chegou a um sal�o, onde algumas pessoas conversavam. L� estava a banda. A mo�a apresentou-se e foi convidada a juntar-se ao grupo para irem juntos ao Maracan�zinho. Durante a viagem no micro�nibus, o grupo cantou e tocou como se estivesse em uma caravana. A entrevista aconteceu no camarim, com os irm�os Nicolas e Canut Reyes, que dedicou o show da noite � jornalista. O est�dio estava lotado e pegou fogo com a m�sica kundal�nica, quente, alegre, moura, apaixonada, dos Gipsy Kings, que reuniram, nessa turn� pelo Brasil, cerca de 65 mil pessoas. Ap�s o show, a jornalista voltou para o camarim, e os seguran�as a confundiram com algu�m da banda. Ela, ent�o, acabou permitindo que a fam�lia cigana Vassite, de m�sicos brasileiros, entrasse no camarim para conhecer os ciganos franceses. Jordana Aristicth, ent�o esposa de Mio Vassite, escritora e bailarina cigana, garante que aquele foi "um encontro emocionante e n�o pude conter as l�grimas. Os Gipsy Kings s�o um exemplo de fidelidade �s suas origens, pois, como ciganos que s�o, assumem com orgulho e altivez sua ra�a." Waneska Vassite, com a roupa usada na dan�a para os Gipsy Kings, no colo de sua av� Jordana Aristicth. Na viagem do ano seguinte, os Gipsy Kings se apresentaram no Canec�o. A menina Waneska Vassite, neta de Jordana e Mio, ent�o com 5 anos, subiu ao palco e dan�ou ao ritmo do hit Bamboleo. Foi lindo e est�vamos l�. A jornalista era eu. Em 2007, os Gipsy Kings completam 20 anos desde o primeiro disco que colocou duas m�sicas nas paradas francesas e espanholas e, depois, na mundial: Bamboleo, que fala de algu�m que � convidado para dan�ar, e Djobi Djoba, que narra um amor que cresce cada dia mais. Com 15 CDs, o grupo continua na estrada, fazendo shows nos Estados Unidos, no Canad�, na Europa e na �sia. Conquistaram grande popularidade exclusivamente pela m�sica, sem muita m�dia e quase nenhuma badala��o ou apelo publicit�rio. H� mais de dez anos n�o se apresentam no Brasil, onde t�m um p�blico fiel, inclusive entre os mais jovens. No dia 24 de mar�o passado, a banda fez a grande festa em Bruxelas para comemorar os 50 anos do Tratado de Roma. Em recente contato, expressaram a vontade de um dia voltar a cantar por aqui. Resta a n�s, brasileiros, fazermos um convite para que venham e toquem juntos com nossos bons violeiros e m�sicos ciganos. Confiram a conversa com Fran�ois Canut que, al�m de guitarrista e cantor de voz rouca e forte, � pintor, e Nicolas Reyes, o vocalista principal da banda. Seu pai, Jos� Reyes, foi grande guitarrista, admirado por John Steinbeck, Chaplin, Picasso, Miles Davis e Salvador Dal�. Condom�nio & etc. - Qual a hist�ria da forma��o da banda? Nicolas Reyes - Somos cantadores ciganos e nascemos na Fran�a. O grupo surgiu do encontro de nossa fam�lia Reyes com os Baliardos, da regi�o francesa dos Pirineus. Os Reyes migraram do norte da Espanha para o sul da Fran�a, Arles, durante a Guerra Civil Espanhola. Nosso pai, Jos� Reyes, que tocou com Manitas de Plata Baliardo, no Carnegie Hall, � uma grande refer�ncia em nossas vidas e, recentemente, nossa fam�lia fundou a associa��o O Mundo de Jos� Reyes. Em uma romaria a Saint Marie de la Mer, em devo��o � Santa Sara, padroeira dos ciganos, eu e meus irm�os Pablo, Patcha� e Canut nos encontramos com nossos primos Tonino, Paco e Diego Baliardo, fortes na guitarra. Em meio a muita m�sica, uma mulher americana exclamou: "Voc�s s�o os Gipsy Kings!" O grupo tem 33 anos e come�amos tocando nas ruas, em casamentos e festas em Saint-Tropez, Montecarlo, Cannes, em toda a C�te-D'Azur, at� conhecermos um produtor. Gipsy Kings � um nome popular, mas o nome da fam�lia � Reyes. C&etc. - Sempre cantaram m�sica cigana? NR - Cantamos a m�sica cigana de uma outra maneira. Nossa m�sica tem um pouco de tudo: rumba, rock'n roll, flamenco, fanandango, um pouco do compasso africano, influ�ncia �rabe tamb�m e palmas. Eu me identifico com o Cante Jondo, e os meus irm�os, com a rumba flamenca, que � mais f�cil para dan�ar. O flamenco, a ess�ncia de nossa m�sica, expressa o grito e as l�grimas de nossa comunidade. A rumba flamenca, uma express�o mais popular, expressa a maneira feliz e sensual como encaramos a vida. Com as novas tecnologias � natural que a m�sica tradicional se transforme. � dif�cil explicar algo que est� no sangue, no esp�rito, no cora��o. C&etc. - Voc�s gravaram o sucesso de Frank Sinatra My Way com o t�tulo A Mi Manera... Os cr�ticos classificam a m�sica do Gipsy Kings como world music. Voc�s concordam com isso? NR - Nossa m�sica � uma rumba flamenca mais moderna, com bateria. Fazemos uma m�sica muito preparada. N�o � o flamenco tradicional da Espanha. C&etc. - A m�sica brasileira tem a ver com o som dos Gipsy Kings? NR - Sim. A m�sica brasileira est� um pouco dentro de nossa m�sica. Nossos ritmos t�m influ�ncia da m�sica africana. C&etc. - O grupo � mais popular na Espanha ou na Fran�a? NR - As pessoas gostam da gente tanto na Espanha quanto na Fran�a, mas n�s preferimos a Alemanha e gostamos muito dos Estados Unidos. C&etc. - Qual o disco ou m�sica preferida? NR - � dif�cil dizer... Gosto muito de Trista Pena e sempre me emociono quando canto essa m�sica. Canut Reyes - Eu tamb�m sempre me emociono muito quando meu irm�o canta essa m�sica. [Nicolas canta um trecho da m�sica Trista Pena.] C&etc. - Lind�ssimo! Que l�ngua � essa em que voc�s cantam e que tanto emociona? NR - � uma mistura, uma m�lange, de catal�o, espanhol e um dialeto de nosso pa�s, o proven�al. Quando cantamos, as pessoas se sentem bem, esquecem das coisas ruins e ficam alegres. Transmitimos nossa hist�ria e cultura em nossas m�sicas. C&etc. - Tem havido muita mudan�a de h�bitos entre os ciganos? Fui a um casamento perto de Bordeaux onde as pessoas n�o dan�avam... E as crian�as? NR - N�o sei... Antes os ciganos se encontravam em um casamento e dan�avam, tocavam guitarra, era muito alegre. Hoje, os ciganos mudaram, est�o mais tristes. Nem ficam contentes de ver os Gipsy Kings... N�o sei por qu�. Trocamos as caravanas e cavalos por carros e avi�es. Sentimos falta de nossas fam�lias quando viajamos, mas as crian�as adoram os presentes que lhes trazemos. CR - Eu adoro e me dou muito bem com todos os meninos e meninas do mundo. C&etc. - Canut, fale um pouco de sua pintura. CR - A luz e a natureza da Provence e da Camargue est�o sempre presentes em meus quadros. O momento de pintar � de paz e felicidade. Quando n�o tenho mais telas, pinto as paredes, mesas e cadeiras de minha casa. [Os quadros de Canut podem ser vistos no site canutreyes.com] C&etc. - Gostariam de deixar uma mensagem especial? NR - O melhor para os ciganos do mundo inteiro � o conv�vio e o sentir-se bem com muitas pessoas diferentes, ter uma vida tranq�ila e ser como todo mundo - cada um com sua casa, com um trabalho, com os meninos na escola. Isso seria melhor. C&etc. - Muito obrigada. Muchas gracias. NR e CR - Muchas gracias. Discografia Gipsy Kings (1988) Mosaique (1989) Allegria (1990) Este Mundo (1991) Live (1992) Love and Liberte (1993) The Best of the Gipsy Kings (1995) Tierra Gitana (1996) Compas (1997) Cantos de Amor (1998) Volare: The Very Best of the Gipsy Kings (1999, relan�ado em 2000) Somos Gitanos (2001) Tonino Baliardo (2003) Roots (2004) Pasajero (2006) | . |
Fonte Revista Condominio & etc. Numero 33