terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Origem do Preconceito aos Ciganos


Somente a partir de meados do Século XVIII foram publicados os primeiros livros sobre os ciganos europeus, e quase todos os autores reforçaram ainda mais os estereótipos negativos já existentes. Dois pioneiros dos estudos ciganos merecem ser citados: o alemão Heinrich Grellmann (1753-1804) e o inglês George Borrow (1803-1881), que até hoje costumam ser citados por muitos ciganólogos.

Grellmann é conhecido principalmente por seu livro Os Ciganos..... na Europa, um verdadeiro sucesso editorial, que foi traduzido em várias línguas[13] Consta que Grellmann só teve contatos esporádicos com alguns poucos ciganos e que, em lugar de realizar pesquisa de campo, preferiu citar outros autores, inaugurando assim uma prática que tornar-se-ia comum entre os ciganólogos, até hoje. A parte etnográfica, por exemplo, foi quase toda ela transcrita de uma série de pequenos artigos originalmente publicados nos Wiener Anzeigen, em 1775/76, de autor anônimo, mas provavelmente de um certo Samuel Ab Hortis, um húngaro judeu, que assim teria sido o primeiro a escrever uma etnografia sistemática dos ciganos, no caso dos ciganos da Hungria e de Siebenburgen (na Áustria, fronteira com a Hungria). Os artigos de Hortis são às vezes literalmente transcritos por Grellmann, que os cita em 103 notas de roda-pé.

Além disto, Grellmann costumava citar fontes jornalísticas sensacionalistas. Num capítulo sobre “Comidas e Bebidas Ciganas”, por exemplo, transcreveu a notícia de jornais de 1782 que acusava os ciganos de serem antropófagos, ou seja, canibais, comedores de carne humana. Na época, 84 ciganos foram presos como suspeitos de terem assassinado e depois comido algumas pessoas desaparecidas: 41 ciganos foram decapitados, enforcados ou esquartejados.

Em 1783, logo após a publicação do livro, que se tornou um best-seller mundial com edições em várias línguas, ficou provado que esta acusação não teve o menor fundamento e que os 41 ciganos mortos (e os outros ainda presos) tinham sido inocentes: as pessoas que supostamente tinham virado churrasco cigano, reapareceram mais vivas do que nunca.

Mas o mal já estava feito: não somente 41 ciganos já tinham sido injustamente e cruelmente executados, como também, através de Grellmann, os europeus tinham sido informados, e agora acreditavam piamente, que um dos pratos preferidos dos ciganos era carne humana[14]

Para Grellmann, se os ciganos vieram da Índia, só podiam ser da casta mais baixa, dos párias, dos intocáveis. Por isso tentou ainda provar semelhanças raciais e culturais entre os ciganos e os párias indianos. Segundo ele, os párias indianos e os ciganos teriam em comum: uma pele escura e baixa estatura, nudez das crianças, moradia em tendas, preferência por roupas encarnadas, uma língua secreta, danças sensuais, endogamia; os indivíduos de ambos os grupos eram sujos e horrorosos, medrosos e covardes, ladrões, mentirosos, e sem noção de pecado; gostavam de bebidas alcoólicas; as mulheres e moças tinham uma conduta imoral; eram indiferentes quanto à religião, etc. etc. Quanto à cultura: os hábitos alimentares dos ciganos não eram dos melhores, a cozinha era pouca higiênica, não tinham horários para comer e beber, e comiam gado morto por doença ou acidentes, ou carne considerada imprópria para consumo; homens e mulheres gostavam de fumar cachimbo. Usavam vestuário pobre, bem colorido, de mau gosto, principalmente as mulheres, além de muitos brincos e aneis. Suas habitações eram primitivas, mesmo entre os sedentários; viviam em barracas, cavernas e tocas subterrâneas, como animais selvagens. Os casamentos eram precoces, entre 12 a 14 anos, não importando que fosse com parentes. Sempre casavam com membros do próprio grupo (endogamia). Tratavam bem as crianças, que eram mimadas demais; tudo lhes era perdoado, e desde cedo aprendiam a dançar e roubar, mas não frequentavam escolas.

Viajavam em bandos liderados por chefes denominados voivode, duque, conde ou rei, numa imitação ridícula de títulos “do mundo civilizado”. Não tinham religião própria, mas sempre adotavam a religião dos países por onde passavam; batizavam suas crianças várias vezes para deste modo obter sempre presentes dos padrinhos, escolhidos preferencialmente entre os gadjé ricos ou poderosos.

Quanto as atividades econômicas, os ciganos seriam pobres por causa de sua preguiça e seu comodismo; desde há muito eram em muitos países conhecidos como ferreiros (mas os seus produtos não tinham qualidade) e criadores e comerciantes de cavalos (principalmente de cavalos com defeitos físicos, mas que eles com inúmeros truques escondiam, não hesitando também em roubar cavalos). Em alguns países também eram contratados como torturadores e carascos, ou exerciam outras “profissões infames” que combinavam com seu caráter cruel. As mulheres praticavam a quiromancia, enganando os crédulos e incautos. Apesar de tudo, eram bons músicos e dançarinos. Na Waláquia e Moldávia eram ainda garimpeiros de ouro, mas produziam pouco por causa de sua preguiça.

A conclusão final de Grellmann era que entre os ciganos predominavam o ócio e a preguiça, e que se sustentavam principalmente mendigando e roubando, e para isto inventaram os mais diversos truques. Mas, acrescenta Grellmann, como os ciganos eram medrosos e covardes, evitavam roubos perigosos e o uso da violência, e normalmente só furtavam coisas pequenas. Sobre o caráter dos ciganos ele informa ainda que eles tinham uma inteligência infantil e uma alma rude e selvagem, eram guiados mais pelo instinto do que pela razão e usavam seu cérebro apenas para satisfazer suas necessidades primárias, animalescas. Eram ainda tagarelos, inconstantes, infieis, ingratos, medrosos, submissos, crueis, orgulhosos, superficiais, preguiçosos, sem sentimento de vergonha ou honra.

Desnecessário dizer que Grellmann não realizou nenhuma pesquisa entre os ciganos para saber se tudo isto era verdade ou apenas fantasia ou invenção. Nem tampouco perguntou aos ciganos porque, eventualmente, eles agiam desta ou daquela maneira, numa tentativa de entender melhor o seu comportamento e sua personalidade. Numa atitude pouca científica, Grellmann apenas reproduziu os estereótipos que em sua época existiam sobre os ciganos.[1]

Apesar de tudo, de um modo geral as críticas ao livro foram positivas, mas um dos críticos, J. Bietser, escreveu: “... aqui, como em várias outras passagens, pode-se duvidar se o Sr. Grellmann alguma vez na vida viu ciganos; observar e pesquisá-los, pelo menos, ele não pode ter feito”. O mesmo autor, depois de criticar váras passagens do livro, lamenta ainda a falta de qualquer simpatia de Grellmann para com as pessoas sobre as quais ele escreveu.[2] Ou seja, o primeiro livro “científico” sobre a origem, a história, a língua, a cultura e o caráter dos ciganos foi, na realidade, um livro anti-cigano. Fato que provavelmente tenha até contribuído para o seu enorme sucesso editorial. E lamentavelmente, este livro anti-cigano seria a fonte principal em que se baseariam, diretamente ou indiretamente, inúmeros ciganólogos posteriores, do Século XIX e até ainda do Século XX, muitos dos quais pesquisadores de gabinete que também nunca viram um cigano em sua vida, e que assim retransmitiram e reforçaram os velhos estereótipos e preconceitos originalmente difundidos por Grellmann, no final do Século XVIII.

Outro importante formador da opinião pública e científica foi George Borrow, um inglês com um extraordinário dom para a aprendizagem de línguas estrangeiras, pelo que em 1833 foi contratado pela British and Foreign Bible Society, uma organização que se dedicava à tradução e divulgação da Bíblia nas mais diversas línguas.

Inicialmente Borrow passou dois anos em São Petersburgo, na Rússia, para coordenar a tradução da bíblia para o manchu (chinês). Foi nesta época que teve contato com ciganos russos - músicos, cantores e dançarinos - que então gozavam de muita popularidade. Depois Borrow foi transferido para a Espanha, para divulgar a bíblia naquele país e para traduzir parte da bíblia (traduziu o Evangelho de São Lucas) para a língua cigana. De volta na Inglaterra, em 1840, casou com uma viúva rica, o que lhe possibilitou dedicar-se à suas atividades de escritor. Para nós interessa principalmente seu primeiro livro, The Zíncali[3], que trata dos ciganos na Espanha[4]; o segundo, The Bible in Spain descreve sua vida de pregador e distribuidor de bíblias naquele país, mas contém poucas informações sobre ciganos[5].

Borrow fez questão de auto-atribuir-se o título de “romany rye” (romani rai), ou seja, um não-cigano que conhece bem e goza da amizade íntima dos ciganos que, por isso, facilmente lhe contam todos os seus segredos. Está fora de dúvida que ele teve contatos com ciganos na Inglaterra, Espanha, Rússia e Hungria, mas sempre se tratava de contatos de curta duração, quando muito de algumas semanas.

Em The Zincali Borrow apresentou uma imagem altamente negativa e estereotipada dos ciganos espanhois: degenerados, vigaristas, ladrões, que precisavam ser ‘civilizados’, iguais aos ‘selvagens’ de outras partes do mundo. Logo no segundo capítulo de The Zincali, ele informa que os ciganos chegaram na Espanha “com uma predisposição para qualquer espécie de crime e vilania” .... “sua presença era uma maldição e uma desgraça seja para aonde eles se dirigiam”.....”A verdade é que eles não hesitariam em atacar ou até assassinar os viajantes desarmados e indefesos desde que estivessem seguros de poderem pilhar sem muito risco para si mesmos” .... “(os ciganos, em qualquer parte) exibem as mesmas tendências ... como se não fossem de espécie humana mas antes animal, e em lugar de razão são dotados de um tipo de instinto que lhes auxilia até um certo limite e nada mais”[6].

Em outro capítulo Borrow acha que ninguém “pode desejar a continuidade de qualquer seita ou associação cujo princípio fundamental parece ser odiar todo o resto da humanidade, e viver enganando-a, como é a prática dos ciganos”[7]. Além disto, em nenhuma parte do mundo os ciganos dariam o mínimo valor ao asseio, pelo que até já foram acasados de terem espalhados a peste, e “ainda hoje eles são igualmente repugnantes”[8]

Apesar de The Zincali também conter informações positivas sobre os ciganos, difícil é acreditar que algum leitor tenha ficado com uma positiva imagem cigana, porque no decorrer do livro todo predominam os estereótipos negativos: inúmeras são as referências a ciganos ladrões e assaltantes, como também a ciganos vigaristas, principalmente no comércio de equinos. Um extenso capítulo trata do suposto e imaginário “canibalismo cigano”. Apesar de Borrow expressar suas dúvidas sobre este canibalismo, para o leitor comum certamente ficará a certeza que os ciganos sempre foram e ainda são “canibais”. A leitura de Borrow evidencia ainda que entre os ciganos viviam muitos profissionais honestos, como músicos, artistas, toureiros, artesões, tratadores de cavalos, ferreiros, açougueiros, hoteleiros e outros, mas apesar disto, o que predomina nos seus livros é a imagem negativa dos ciganos, principalmente dos ciganos espanhois.

Antes de publicar este livro, Borrow já tinha escrito que “... os ciganos espanhois são o mais vil, degenerado e miserável povo na terra”.[9] Segundo Borrow, os ciganos já tinham este caráter criminoso ao chegarem na Europa e foram eles que introduziram a atividade de ladrão profissional no Continente Europeu, sendo seu exemplo depois seguido por não-ciganos; roubavam mulas e cavalos, assaltavam e assassinavam, mas como eram covardes, evitavam situações perigosas. Os ciganos mais fracos, e que não prestavam para esta vida criminosa, produziam artesanato ou vendiam os cavalos roubados nas feiras.

As mulheres ciganas não mereceram um tratamento melhor: dedicavam-se à quiromancia, uma prática para enganar os crédulos e supersticiosos, e na qual utilizavam inúmeros truques sujos. Para Borrow, as ciganas eram umas verdadeiras bruxas, capazes de artes diabólicas, peritas em venenos e poções afrodisíacas ou abortivas. Eram ainda cantadoras de canções obscenas, batedoras de carteiras e furtavam nas lojas. Mas nem tudo era negativo: as ciganas valorizam a castidade antes do casamento e a fidelidade conjugal; prostituição, nem pensar, e cigana que casasse com não-cigano seria expulsa do grupo. Borrow cita até o caso de uma cigana que foi enterrada viva por causa disto, o que seria mais uma prova da crueldade inata dos ciganos.

Os livros de Borrow provam ainda que também ele – da mesma forma como Grellmann - não tinha a mínima simpatia pelos ciganos e que, na realidade, até os detestava. Um agravante é que anos depois, em 1874, o ciganólogo Groom descobriu que Borrow plagiou descaradamente muitas informações sobre os ciganos espanhois e húngaros de um livro de viagem pouco conhecido de Richard Bright, publicado em 1818. Groom, antes um admirador confesso de Borrow, depois chega a chamá-lo de impostor, mas apesar disto o auto-proclamado ‘romani rai’ e ‘amigo dos ciganos’ Borrow ficou famoso como a maior autoridade em assuntos ciganos na Europa do Século XIX. O problema é que muitos ciganólogos e pseudo-ciganólogos posteriores, poucos dos quais tiveram qualquer contato pessoal com ciganos, se basearam em Borrow, e plagiaram descaradamente seus livros. Ou seja, plagiaram o que já era plagiado!

[1] Evans 1996; cfr. também o Report do Helsinki Committee for Human Rights in Serbia.

[2] Stewart 1997, p. 3

[3] ERRC, “Written comments concerning the former Yugoslav Republic of Macedonia..... 1998”.

[4] Stewart 1997, p. 13

[5]ERRC 1997, no. 3; sobre a discriminação profissional na ex-Tchecoslováquia, veja também Helsinki Watch 1992, pp. 75-90.

[6]ERRC, Divide and deport: Roma & Sinti in Austria, Country Reports Series no. 1, Budapest, 1996

[7]Fox 1995; Auzias, C., “Le statut des Roms en Europe”, IN: Les Tsiganes, Paris, Ed. Michalon, 1995, pp. 86-90; ERRC, “Written Comments concerning the Czech Republic .... 1998”.

[8]ERRC 1998, no. 7, p. 24

[9]Danova, S. & Russinov, R., “The ERRC in Croatia – field report”, Roma Rights, Summer 1998, pp. 49-57

[10]ERRC, “Written Comments concerning the Czech Republic ...... 1998”.

[11] Veja vários artigos no The Patrin Web Journal – Canada as Haven for Roma e Roma Exodus from Czech Republic, como também ERRC, “Written Comments concerning the Czech Republic..... 1998”. Em abril de 1997, pela primeira vez uma família de vinte Rom tchecos – os pais, 3 filhos e suas esposas e 12 netos – receberam asilo político, o que abre um precedente para outros mais de mil Rom tchecos e 500 Rom húngaros que solicitaram asilo; cfr. Roma Rights, Spring 1998, pp. 14-15

[12] San Roman, T., “Culture traditionelle et transformation de l’identité ethnique chez les gitans espagnols en voie d’intégration”, IN: Williams, P. (ed.), Tsiganes: identité, évolution, Paris, Études Tsiganes/Syros Alternatives, 1989, pp. 203-211

[13]H.M. Grellmann, Die Zigeuner. Ein historischer Versuch uber die Lebensart und Verfassung, Sitten und Schicksale dieses Volks in Europa, nebst ihre Ursprunge, Dessau/Leipzig 1783; 2a. edição ampliada Gottingen 1787; traduções em inglês (1787 e 1807), francês (1788 e 1807), holandês (1791) e polonês (1824). Infelizmente não foi possível obter qualquer edição deste livro pelo que as informações a seguir sobre H. Grellmann baseiam-se principalmente em W. Willems, Op zoek naar de ware zigeuner: zigeuners als studieobject tijdens de Verlichting, de Romantiek en het Nazisme, Utrecht, Van Arkel, 1995, pp. 23-90.

[14]Fraser, A., The Gypsies, Oxford, Blackwell Publishers, 1992, pp. 195-196; Willems 1995, pp. 27-28. O número dos ciganos presos e condenados varia um pouco de um autor para outro.


Conteudo do Livro
"ROM, SINTI E CALON OS ASSIM CHAMADOS CIGANOS" de FRANS MOONEN