quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Vida Cigana


Vida Cigana

Jovens nômades contam como mantêm cultura e tradições
em acampamentos espalhados pelo país

Diário OnLine
Tradição: Famílias de ciganos mantêm vivas as
tradições, apesar de alguns viverem fora da Lei
Ser nômade, para muitos ciganos, é a condição sine qua non da própria existência. “Cigano não quer pátria. Quer voar, ser livre, não quer ficar preso ao sistema”, diz Bruno da Silva Soares, 16.Bruno é um dos ciganos que acampa ao lado da linha do trem, em Itapevi (43 km a oeste de São Paulo). Chamam-se a si mesmos de calós e são de origem romani-ibérica. Mesmo há 15 anos no acampamento, são raras as famílias, entre as 98 que se distribuem em 32 barracas, que moram só ali. O clima é de chegada. Ou de partida.Os últimos que vieram são um grupo de 15 alagoanos, há um mês em São Paulo. “Somos de Penedo, viemos de ônibus de Sergipe, mas antes a gente vinha montado em jegue até São Paulo. Iam uns três em cada um, em cestos. Levava mais de um mês para chegar”, conta José Ramos, 21.Na viagem, José e seus familiares praticamente só levam algum dinheiro, ‘o mínimo para fazer um pequeno comércio’, segundo ele. E, se não têm casa para dormir, eles constróem. “A gente compra a lona no centro da cidade e monta a barraca em dez minutos”, diz José.”Eu vim com R$ 100. Dá para comprar dez reloginhos. Boto na prancheta e saio para vender. Subo e desço ladeira em São Paulo com eles”, conta José, que vem a São Paulo desde os sete anos. Os alagoanos querem ficar quatro meses para depois passar uma temporada em Santos.No acampamento, apesar dos grupos se dizerem unidos por laços étnicos e a língua oficial ser o caló, que lembra o catalão, os limites regionais são visíveis. De um lado estão os alagoanos. De outro, os mineiros. Os capixabas entre eles. E por aí vai. Vêm de todas as partes do Brasil.Os alagoanos têm as barracas mais simples. Dentro, só cabe a cama. À frente há uma pequena fogueira para preparar as refeições. As barracas dos ciganos vindos de Minas Gerais são menos precárias, mas lá também transparece a pobreza.Mais adiante estão as barracas dos capixabas. Chegaram há 30 anos do Espírito Santo e foram os primeiros a ocupar esse território em Itapevi. E, como na lei dos ciganos, quem chega antes manda, entre eles estão os capitães. Traçam as rotas de viagem, decidem disputas e as datas das festas.As barracas dos capixabas chamam a atenção pela divisão de espaços idêntica em todas as barracas: carro de um lado, cama de outro e, à entrada da tenda, fogão e pilhas de panelas areadas.Dentro delas, há mulheres e crianças. Vanessa Maria de Oliveira, 14, é a mulher de Bruno. Casou há um ano e mora com ele e os sogros. Às onze da manhã já preparou o almoço e lavou a roupa. Ao som de música sertaneja, cola unhas postiças.”Quando a gente casa, os ciganos não admitem que a gente continue na escola. Mas, para mim, tanto faz”, conta Vanessa, que diz ter passado em todas as matérias da sexta série, quando parou de estudar.Sônia Ferreira Amaral, 18, também ‘adotou’ a família do marido desde que se casou, também aos 13. “É a tradição. Quando a mulher casa, vai morar com o marido e com os pais dele. Eu estudei até a quinta série. Depois, tive que parar”, diz.Freqüentar escolas regularmente é um desafio. Além dos ciganos levantarem sempre acampamento, os capitães dos grupos não incentivam a escolaridade tradicional.Fernanda Evans Sbano, 12, mora com sua família de origem cigana romani, dona do pequeno circo Sbano, armado no Jardim Palmira, na Grande São Paulo. Há um ano Fernanda se apresenta fazendo força capilar, número acrobático em que ela é sustentada pelo cabelo.Ela cursa a sétima série, mas sempre muda de escola. Chegou a ficar dez dias em uma. Isso é possível pela lei do Conselho Estadual da Educação, que permite a mudança de escolas para estudantes sem endereço permanente quando os pais têm profissões itinerantes, como aqueles que trabalham em circos.”É difícil fazer amigos, eles ficam muito impressionados por eu ser de circo. Fazem perguntas das quais eu não gosto. Por exemplo, se eu durmo em cama, se tenho banheiro”, diz Fernanda, sentada em frente ao picadeiro. Ao redor, cinco traillers e nove cachorros ‘que foram aparecendo pelo caminho’ e um cavalo, o Mescaleiro, o que sobrou da cavalaria dos tempos de glória do circo, quando a família chegou a ter nove deles, há três décadas.Assim como Fernanda, seus primos adolescentes que moram no circo passam as noites recolhidos. Os ciganos em Itapevi também não costumam sair do acampamento. A balada é à frente da fogueira. Conversam e dançam forró e música sertaneja, além de música. “Hoje eu vim ao acampamento para fazer uma saia com a costureira para a festa de Nossa Senhora Aparecida”, diz Sônia.A santa é para os ciganos a representação brasileira de Santa Sara Cali, a padroeira dos ciganos. Por isso, no dia 12 de outubro vai ter festa no acampamento.Ciganos nem sempre vivem dentro da leiAlguns ciganos vivem fora da lei no Brasil. Isso acontece quando ocupam terrenos de maneira ilegal, não possuem documentos, não votam e não pagam impostos como os demais cidadãos.Segundo Eduardo Tess Filho, presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), da seção de São Paulo, os ciganos no Brasil não têm um tratamento diferenciado segundo a Constituição, assim como qualquer outro grupo étnico ou cultural.”Quando os ciganos são estrangeiros precisam obedecer as leis de imigração. Mas, quando se trata de um brasileiro, não ter e não portar a documentação mínima exigida, como o RG, a pessoa está irregular. Quem não cumpre seus deveres cívicos, como votar, também está irregular. Não servir o Exército quando convocado é considerado ilegal. Não pagar impostos é sonegação, e sonegação é crime. Ocupar terrenos de maneira irregular também é um ato criminoso, seja em propriedade privada ou pública”.”A única diferenciação que a Constituição faz é para os índios, que já estavam aqui quando o Brasil foi colonizado. Existe o reconhecimento dos direitos à cultura e língua desses povos primitivos’, diz Tess Filho.Acampamentos
Os ciganos que vivem no acampamento de Itapevi não ocupam o local de maneira legal, de acordo com a assessoria da Secretaria de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de Itapevi. Essas famílias estão num terreno que pertence à CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos).”A prefeitura não fornece água, luz ou esgoto. Se eles têm luz e água, estão fazendo ligações clandestinas, portanto é ilegal”, diz a assessoria de imprensa da Prefeitura de Itapevi.O cigano Reginaldo Marques Oliveira, 32, conhecido como Juan, não vive no acampamento mas tenta ajudar seus ‘irmãos’ orientando-os com relação a questões legais, como, por exemplo, a necessidade de fazer documentos. “É um povo muito fechado, é cultural, mas aos poucos estão aprendendo”.

Origem
Qual é a origem dos ciganos? Embora muitos ostentem no peito medalhões de ouro com pirâmides gravadas, os primeiros grupos de ciganos teriam partido da Índia. “Há mil anos, de acordo estudos lingüísticos”, diz a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Universidade de São Paulo. Quem dá a pista é o próprio idioma que eles falam até hoje, o romani.Além de o romani ter como base o sânscrito ou o punjali, línguas que eram faladas na Índia no passado, o idioma cigano herdou outros idiomas com os quais os ciganos tiveram contato durante o êxodo.”O romani vai seguindo a trilha geográfica por onde eles passaram. Eles saíram da Índia, foram para a Pérsia, depois passaram pelo Império Bizantino, no século 14, e a partir daí seguiram para o leste europeu e o norte da Europa”.Segundo Tucci, são várias as ramificações de ciganos que se espalharam pela Europa. Como conseqüência, o romani se dividiu em vários dialetos. Um deles é o caló, de origem ibérica, também falado entre os ciganos no Brasil.Os primeiros ciganos vieram parar aqui durante a época da Colônia. De acordo com Tucci, primeiro eles tiveram de enfrentar os julgamentos da Inquisição em Portugal, por serem confundidos com feiticeiros, ‘pelo aspecto sobrenatural da prática da cartomancia e da leitura de mãos’. Em seguida, foram deportados para as colônias portuguesas da África e do Brasil.Apesar dessas linhas gerais de grandes correntes migratórias, a história dos ciganos é um vai-e-vem incerto. “O povo tem uma forte tradição nômade e, quase sempre, as peregrinações se confundem com perseguições por preconceito cultural”, diz Tucci.”Estava pesquisando o período Vargas no arquivo do Itamaraty e encontrei ofícios secretos do governo, de 1936, proibindo os ciganos de entrarem no Brasil. Eram cerca de 30 ciganos fugidos do leste europeu, a bordo de um navio chamado Alexandrino”, diz ela.”Eles vinham de Lisboa, havia entre eles gente de 60 anos e crianças de dois, de quatro anos de idade. Foram impedidos de desembarcar no Rio de Janeiro”, conta Tucci. “É uma rota sem destino, eles iam de porto em porto, de país em país, até quando pudessem descer do navio”.Segundo Tucci, criou-se um estigma em torno do perfil cultural dos ciganos. “Por isso hoje eles têm um tratamento diferenciado. Primeiro porque são itinerantes, sempre vistos como estranhos. Depois, porque o idioma que falam, comparado às grandes línguas européias, gera um ruído”, diz a historiadora, que além de ser professora de história da USP é diretora do Lei, o Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, que pertence à universidade.Até a independência do Brasil, no século 19, os ciganos eram julgados pela legislação portuguesa. Tucci conta que eles apareciam em várias passagens da legislação como um povo estranho.”Eles tinham que manter distância das outras pessoas, eram proibidos de freqüentar lugares públicos e de falar a ‘geringonça’ - essa é a expressão que eles usavam para chamar a língua deles”.Tucci comenta a imagem que se tem deles hoje. Afinal, eles são conhecidos pelo modo de vida introspectivo e por carregar uma espécie de aura misteriosa. “É o lado sobrenatural deles, que envolve a quiromancia e a cartomancia, e que é o mais explorado pela televisão quando se refere a eles”, diz ela.


Material Publicada no Jornal Diario do Vale