quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Palavras que podem se perder

Estudo pode resgatar dialeto calon falado por ciganos no norte
de Goiás. Até hoje não há registros escritos da língua

Uma língua ágrafa – cujo conteúdo não se encontra registrado em livros e é apenas falada – pode desaparecer com o tempo. Com ela, se perdem também a cultura, a identidade e os costumes de um povo. Preocupado com essa questão, o pesquisador do Instituto de Letras (IL) da Universidade de Brasília (UnB), o mestre em Lingüística Fábio José Dantas Melo, mergulhou na cultura dos ciganos Calon, que vivem em Mambaí, nordeste do estado de Goiás, a 250 km de Brasília. Sua intenção: recuperar o dialeto falado por essa comunidade.

Os Calon são ciganos provenientes da Península Ibérica, remanescentes do subgrupo calé, que partiu da Índia e passou por vários lugares até se instalar na Espanha, depois em Portugal e por fim no Brasil. Ao se instalar em Goiás na década de 1970, o grupo deixou de ser nômade e hoje soma 114 famílias Calon, totalizando mais de duas mil pessoas.

Durante um ano e meio, período em que fez o mestrado, Melo fez várias visitas ao povoado e elegeu quatro representantes, entre os anciãos da comunidade, para conhecer o idioma. Essas pessoas escolhidas pelo pesquisador tinham o dialeto menos influenciado pelo português. A idéia era descobrir palavras que fazem parte do cotidiano deles e têm correspondentes na língua portuguesa e verificar a proximidade com o romani, língua primordial dos ciganos. A pesquisa está registrada na dissertação de mestrado de Melo, intitulada O Romani dos Calon na Região de Mambaí: Uma Língua Obsolescente e orientada pelo professor do Departamento de Lingüística, Línguas Clássicas e Vernácula (LIV), Hildo Honório do Couto. O mestrado foi defendido em março de 2005.

Na pesquisa, Melo registrou 407 palavras do dialeto cigano. Mas o estudo deve prosseguir no doutorado com a produção de um dicionário. O resultado final será entregue à comunidade, que se beneficiará com o registro da língua, aumentando, assim, as chances de sua preservação.

MORTE GRADUAL – O bacharel em Letras percebeu forte influência do português na língua falada pelos ciganos, o que pode levar a uma morte gradual do dialeto. Crianças e jovens entre si falam mais o português e uma ou outra palavra em calon. Os mais novos não aprendem a língua cigana na escola, pois o aprendizado se dá apenas pela transmissão oral. Os adultos falam o calon mesclado com o português com as crianças, mas optam pelo calon entre si. Ainda assim, alguns adultos já mostram sinais de deterioração da língua cigana. Ela é mais utilizada em ocasiões de negócio, quando os mais velos querem manter segredo, e para mandar recados.

Melo percebeu que a língua cigana apresenta a mesma ordenação de sujeito, verbo e predicado que a língua portuguesa. Além disso, também há palavras cujo padrão de ordenação de vogais e consoantes imita o do português. Em outras situações, as palavras ciganas aparecem soltas em frases do português. “Devido à convivência direta com os brasileiros, a língua dos ciganos foi se tornando mista. Encontrei palavras como agurã (agora) e arguduni (algodão), que parecem muito com o português”, diz Melo.

QUEM SÃO OS CALON – São ciganos que vieram da Península Ibérica, do subgrupo calé, e foram degredados para o Brasil na segunda metade do século XVI. Esse subgrupo foi subdivido em gitanos na Espanha, falantes do caló, em calão em Portugal e em Calon, no Brasil. No Brasil, os Calon estão situados nas regiões de Mambaí (nordeste de GO), Posse (GO), Trindade (GO), Sousa (Paraíba), no Paraná e em outras localidades ainda não-registradas. O chefe da comunidade de Mambaí é o Dálcio Alves da Silva.

Nessa região, os ciganos moram em casas de alvenaria. Os homens vivem da corretagem (construção de casas para alugar), da compra e venda de carros e alguns são seguranças em fazendas. As mulheres lêem a sorte e vendem colchas e toalhas de mesa. O grupo valoriza muito a convivência familiar e, ao contrário da tradição, já aceita o casamento de ciganos com pessoas de fora do grupo. As crianças estão matriculadas em escolas e são alfabetizadas em português.

Os Calon, assim como outros ciganos, valorizam bastante as vestimentas, gostando de roupas coloridas. Os homens usam chapéus e botas de boiadeiro e alguns ostentam dentes de ouro. As principais festas da comunidade são o batizado e o casamento, como na igreja católica.

Palavras identificadas pelo pesquisador em calon
criança - chaburron
árvore - cais
amigo – unga ron que camêla mistori
falar - ariquéldar
beijo - esturdá
bonito - babanon
deus - duveli
mãe - dai
casamento - rimidinhar
linguagem - chibi

Palavras de influência do português e modificadas por eles
agora – agurã
nosso – noska
algodão - arguduni

Sinais de deterioração da língua
- Ordenação da frase semelhante ao português
- Seqüência de vogais e consoantes parecidas com o português
- Perda das terminações indicativas das funções sintáticas

CONTATO
Mestre em Lingüística pela UnB Fábio José Dantas de Melo pelo e-mail fabiojose@unb.br e pelo telefone (61) 9245 1068.

Conteudo da Secretaria de Comunicacao da Universidade de Brasilia