sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Ciganos na Corte

O Sr. Pinto Noites [cigano de 92 anos], que ainda conserva a lembrança das festas que tiveram lugar por ocasião dos desposórios de Sr. D. Pedro I com a Princesa D. Leopoldina, Arquiduquesa d’Áustria, descreveu-nos com clareza o que vira, chamando especialmente o nosso interesse para o “curro no Campo”, por isso que aos do seu núcleo couberam as glórias mais vivas.


Começaram os festejos a 12 de outubro de 1818 e terminaram a 15.

No primeiro dia, depois das salvas das fortalezas, da recepção do corpo diplomático no Paço da Boa Vista e das solenidades religiosas, o povo em multidão, apinhado nas praças, nas janelas, nos telhados, impacientava-se por avistar Suas Majestades e a família real.

As portas das casas estavam armadas de seda, as colchas de damasco espelhavam ao sol, as ruas eram cintilantes de areia fina e esmaltada de flores.

Coretos com bandas militares, arcos e bandeiras tremulando nos galhardetes, soldados dos regimentos e das milícias, gente aos borbotões, davam a essa festa o cunho da magnificência das dinastias asiáticas...

Os sinos repicam, as girândolas estrugem, os batedores, à disparada, de espadas desembainhadas, abrem alas...

D. João VI e a sua corte, às aclamações das turbas, aos sons das fanfarras, entram triunfantes no Campo de Sant’Ana, para assistir ao curro.

O Senado da Câmara aí fizera preparar um anfiteatro deslumbrante: o terreiro, aplainado para as cavalhadas, achava-se circulado de arquibancadas inúmeras, com panejamentos de cores múltiplas, enfeitadas de bandeiras, destacando-se ao fundo o pavilhão de el-rei, enorme, forrado de veludo e ouro, com cortinas de damasco finíssimo, estreladas e franjadas de ouro, sobressaindo na frisa as armas portuguesas, entre legendas fulgurantes.

Nos palanques faustosamente adornados, a fidalguia e a vadiagem dominavam absolutas.

El-rei e os nobres, no seu dossel suntuoso, escutam as bandas de música que executam dobrados e hinos, esperando o torneio.

A foguetaria estoura, as beldades, faiscantes de pérolas e brilhantes, anseiam pelo instante da justa, que deveria ser admirável.

Em frente do palanque real, o rico e humanitário cigano [grifamos] Joaquim Antônio Rabelo mandara arranjar, com a maior galhardia imaginável, um tablado de preciosa madeira, onde se erguia, dos quatro cantos, uma construção de estilo egípcio, realçando sobre o damasco, a seda e o veludo, galões e rendas de ouro.

Joaquim Antônio Rabelo, a quem a história nacional talvez um dia considere como uma força nas agitações políticas da Independência, assim determinara, para o dançado dos ciganos, a quem ensaiara com entusiasmo artístico e vestira à sua custa.

Às quatro horas da tarde rebentam bombas, as girândolas sibilam e um soar de guizos, chocalhando nas cabeças e peitorais de fogosos ginetes, anunciou as cavalhadas.

[....................................................................................................................................]

Nisso, um outro grupo salta na liça: — os Ciganos.

Guiando soberbos cavalos brancos arreados com igualdade e riqueza, balançando penachos implantados em discos e forma lunar, luzidos criados transpõem as barreiras.

Os bailadores trazem as bailarinas à garupa: morenas, sedutoras como as profetisas gentias.

Os homens trajam jaqueta escarlate, calção de veludo azul, meias de seda cor-de-rosa, chapéu desabado de veludo com plumas, sapatos baixos de fivelas. As moças ajustam à cintura flexível costume de veludo, primorosamente bordado, calção, meias escarlates, sapatos de cetim branco com ramagens de ouro; na cabeça, como um turbante de nuvens, um toucando azul recamado de estrelas, como o diadema das noites do Oriente.

A embaixada cigana dirige-se ao palanque real; a música toca, e os corcéis levemente fustigados, empinam-se no centro da planície, rodam, dançam a polca.

A multidão, contente do desempenho, manifesta-se com ruído.

Findos os primeiros exercícios, os pagens tomam da brida dos animais e conduzem os cavaleiros ao recinto do baile.

Aí, depois das cortesias à família real, uma salva de castanholas marca o princípio do dançado... E, ao som das guitarras, o fandango espanhol peneira, arde e geme — mansinho como as ondulações de um lago, quente como os beijos das odaliscas, lascivo como as inspirações do Poeta-rei.

Os dançarinos são vitoriados: flores, fitas, aplausos, eles os conquistam pela magia plangente de seus instrumentos, pela graça ideal de suas danças.

D. João VI, participando do agrado geral, fá-los vir à sua presença. Uma banda de música precede-os na maior ordem.

Subindo ao pavilhão, dois camaristas trazem, estendidos num coxim de púrpura, os prêmios que lhes eram

destinados: patentes militares aos homens e jóias às mulheres.

As ovações, os vivas a el-rei e as harmonias coroavam os artistas e a festa...

Restabelecido o silêncio, voltaram, jubilosos a seu palanque.

Preludiaram na guitarra uns acordes casados a vozes de uma cantilena em sua linguagem.

A tradição olvidou a toada e as letras...

Para o Sr. Pinto Noites, era o Canto egípcio.

Às 6 horas os clarins, à frente de enorme préstito, ecoaram na cidade. El-rei nosso senhor via as luminárias...

Uma mulher trigueira, no auge da aflição, olhando para uma cruz vermelha, pintada no alto de sua porta, fitou o rei na sua passagem, e estendendo os braços, como que querendo repelir uma visão perseguidora exclamou: —Jala-te beng! (Vai-te diabo!)

Trata-se do belo texto de Mello Morais Filho e está em Os ciganos do Brasil* e
Cancioneiro dos ciganos
, p. 29 a 33. (Editora Itatiaia, 1981)